Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Sobre censura e direito de resposta

O espaço dedicado à liberdade de imprensa no Brasil e no mundo só faz crescer. Está nas manchetes dos jornais e das revistas e vira e mexe aparece na escalada de notícias dos principais telejornais brasileiros. Quando não é mais uma diatribe de Hugo Chávez prendendo e arrebentando jornalistas, fechando emissoras de televisão na Venezuela, temos o noticiário do Estado de S.Paulo carregando nas tintas de que está sob censura. Refere-se à proibição de justiça de que continue divulgando lances da operação Boi Barrica, levada a cabo pela Polícia Federal.


Mais um pouco, e para reavivar os tempos sombrios do último surto ditatorial no país – nada menos que 20 anos – teremos a nos confrontar páginas de Os Lusíadas ou mesmo prosaicas receitas de bolo de cenoura no espaço que o jornal haveria que dedicar à Boi Barrica. Existe uma fronteira tênue a ser percebida. O que é lídimo na reação do Estadão ao que chama de censura à livre difusão de notícias e o que é assunção do papel de vítima para atrair a atenção de novos leitores? Por que a grande mídia se fecha em copas quando atua na defesa de interesses meramente corporativos e deixa o Estadão clamando no deserto como uma voz solitária e já rouquenha?


Não faz muito tempo estávamos às voltas com a polêmica da ditadura versus ‘ditabranda’ escandida pela Folha de S.Paulo e que eriçou juristas, intelectuais e leitores, muitos daqueles que lutaram contra a ditadura iniciada em 1964. Também notamos a falta de representantes da grande mídia em tratar daquele período e muito menos de se posicionar a favor ou contra sua designação como ‘ditabranda’. Foi como se dissessem à Folha: ‘Cuida da `ditabranda´ que o filho é teu!’


Valores universais


O discurso corrente da liberdade de imprensa privilegia tão somente essa liberdade como um direito. Um direito tão ou mais sagrado que aqueles enunciados a Moisés, no Monte Sinai, há dezenas de séculos, e que conhecemos como o Decálogo ou, mais intimamente, como os Dez Mandamentos. O ponto é que ninguém de peso na seara midiática aborda a questão pelo viés dos deveres para com a liberdade de imprensa. Como era de se esperar, a nossa parte é para com os direitos e nada temos a ver com os deveres. É aqui que vemos a confusão, uma confusão que faz alguém confundir um anão com uma criança. Podem ter a mesma estatura, a mesma ‘centimetragem’ mas, obviamente, são pessoas muito diferentes, bastante distintas.


No meio de tudo isso, nos últimos cinco meses vimos a revogação pelo Supremo Tribunal Federal da Lei de Imprensa, gestada e parida sob o regime ditatorial. Revogou-se a lei e com ela se lançou à vala comum das boas intenções o igualmente indispensável direito de resposta. Sim, aquele direito antes acessível às vítimas de imprensa, de poderem se proteger contra seus abusos e excessos criminosos. Tratava-se do direito de uma pessoa exigir reparação pelos crimes cometidos, principalmente os chamados crimes contra a honra, pelos meios de comunicação.


Quase na mesma fornada a Suprema Corte decidiu que o diploma de curso superior de jornalismo é tão necessário quanto seria o diploma do curso de culinária para atestar a perícia dos cozinheiros no exercício de sua atividade. Em um país onde se registra uma impressionante concentração dos meios de comunicação nas mãos e desígnios de apenas 7 ou 8 famílias haveria que se refletir para além apenas da questão da liberdade de imprensa. Por exemplo, sabemos que todos têm o direito de dizer algo. É um direito consagrado inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Mas também sabemos que somente uns poucos têm o privilégio de ser ouvidos.


Se a estrutura de poder em escala internacional impõe valores universais centrados na violência e no consumo, sempre coerente com uma lógica de que somos aquilo que possuímos, não é de admirar que as massas anônimas dificilmente conseguirão espaço nos meios midiáticos para a defesa de seus direitos. Termina acontecendo que uma pessoa que não tem poder de compra também não tem direito à cidadania. Tão simples quanto isto.


Estranho, estranhíssimo


Nós nos tornamos ferramentas de nossas ferramentas. Como diria Eduardo Galeano ‘somos dirigidos por nosso carro’ e não o contrário. Se fosse baixado um decreto – de preferência divino, evitando assim qualquer contestação – proibindo a exploração da violência como forma de entretenimento nos meios de comunicação, não passaria muito tempo para vermos empresas de comunicação indo à bancarrota, caindo como se pedras de extenso dominó fossem.


Recebemos uma dose diária e maciça de rios de sangue com as coisas explodindo a torto e a direito, seja nos desenhos animados onde ainda se pratica a ressurreição imediata e instantânea dos personagens, seja na cobertura das catástrofes naturais ou nos intermináveis bate-bocas dos chamados realities shows. Tudo é detonado a um só tempo. Quanto mais violenta a notícia, quanto mais grotesca a imagem, maior a segurança de que ocupará um lugar de destaque na escalada dos telejornais. E terá garantia de sua repercussão pelos dias e semanas vindouros.


O que chamamos hoje de pesquisa de opinião poderia ser, em certo sentido, ser chamado de termômetro de como é percebida a violência no universo pesquisado. O resultado é que ao respiramos tão elevada carga de violência resta-nos apenas expirar porções generosas de ansiedade e de angústia.


Retornando a nosso ponto de partida: há que se resgatar o debate sobre o direito de resposta. Tanto quanto o direito de se divulgar processos que correm em segredo de justiça. Há que se atentar para os interesses envolvidos quando um jornal, revista, canal de televisão ou de emissora de rádio começa a empunhar bandeiras e a bater o bumbo a intervalos inferior a dez segundos. É sinal de que algo estranho, estranhíssimo, pode ter movido essa ou aquela postura editorial. Em um espectro onde o degradée se torna cada vez mais presente no lusco-fusco dos interesses legítimos e os interesses escusos há que se atentar para a voz da cidadania: por uma mídia cidadã, não corporativista e não propriedade exclusiva de uma meia dúzia de felizes empresários.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo