Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre heranças e maldições

O editorial da Folha de S.Paulo (‘Herança maldita’, 6/11, reproduzido abaixo) veio, em boa hora, mostrar que a situação financeira complicada do município de São Paulo não deve, tanto quanto a análoga a ela no plano federal, ser usada como desculpa por José Serra para justificar descumprimento por ele de suas promessas de campanha.

É preciso, ainda, esclarecer um ponto do tal editorial citado. A certa altura, o texto diz que…

‘(…) depois de um esforço inicial de equacionamento das finanças de São Paulo, a prefeita Marta Suplicy parece ter considerado que a relação custo-benefício de conter despesas para melhorar o perfil da dívida não seria vantajosa num cenário em que a renegociação já se configurava como provável. Contando, então, com o apoio federal, a prefeita apostou no fato consumado do endividamento insustentável e abriu os cofres para tentar a reeleição’.

O que o editorial não diz é que, se tivesse havido a contenção de despesas que afirma que não houve, a dívida de São Paulo, que era de 4,7 bilhões reais ao fim do governo Luíza Erundina, de 12,6 bilhões de reais ao fim do governo Paulo Maluf, de 21,6 bilhões de reais ao término do mandato de Celso Pitta e de 30 bilhões de reais ao fim do governo Marta Suplicy não teria terminado este último governo em menos que, vá lá, uns 29,5 bilhões de reais, quando muito.

Além disso, o editorial deixa de mencionar que a prefeita Marta não contraiu novos empréstimos, pois a Lei de Responsabilidade Fiscal não lhe permitiu, devido a que, desde que assumiu, o limite de endividamento de São Paulo imposto pela LRF estava estourado.

Causa de engulhos

Mas o que assustou mesmo foi que o mencionado editorial da Folha parece ter sido constrangedoramente plagiado pelo Estado de S.Paulo (‘A herança de Marta’, 4/11). Ambos vêm reproduzidos abaixo para que o leitor possa compará-los.

Obviamente, teve a mesma intenção do texto do jornal concorrente de começar a prover desculpas ao prefeito eleito José Serra a fim de inocentá-lo, perante a população paulistana, quando começar a não cumprir suas promessas irrealistas de governar melhor do que a prefeita Marta Suplicy enquanto diminui impostos de um município já há muito tempo quebrado.

É assustar e revolver o estômago aquilo no que está se transformando a imprensa paulista.

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A herança de Marta

O Estado de S.Paulo (editorial, 4/11/2004)

Não foi à toa que a primeira preocupação manifestada pelo prefeito eleito José Serra tenha sido com a situação das finanças da capital paulista. Espera ele que a prefeita Marta Suplicy, nos dois meses de administração que lhe restam, faça um descomunal esforço de austeridade fiscal, pelo menos para não deixar para o exercício de 2005 restos a pagar sem cobertura de caixa. Na verdade, a maior interessada nesse ajuste deveria ser a prefeita. Afinal, se não conseguir equilibrar as contas, corre o risco de infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei dos Crimes Fiscais, que prevê punições que vão da inabilitação para o exercício de cargos públicos e eletivos até a prisão, para o gestor relapso.

Durante quatro anos, a prefeita Marta Suplicy não se preocupou com as finanças municipais. Em novembro de 2002, deixou de abater R$ 3 bilhões da dívida repactuada com a União e, assim, o Município perdeu o desconto da taxa de juros incidente sobre o consolidado e, em vez de6%ao ano, passou a pagar 9%.

A dívida do Município passou de 192,98%da receita líquida da Prefeitura, em 2001, para 233,49% no segundo quadrimestre de 2004 – e isso não ocorreu apenas porque o índice de correção da dívida consolidada aumentou, mas também porque a prefeita assinou todos os contratos de empréstimos que haviam sido deixados em suspenso pelo seu predecessor e buscou recursos para financiar as obras com que pretendia impressionar o eleitorado, no quarto final de seu mandato. Marta Suplicy cometeu o erro de acreditar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva encontraria meios para aliviar a situação financeira de São Paulo, sem se dar conta de que o presidente estava tolhido pela LRF e, mais importante que isso, acreditava que essa lei é o mais importante instrumento criado no País para impedir que administrações perdulárias ponham a perder os esforços comuns de ajuste fiscal. O máximo que a administração Marta Suplicy fez foi acumular superávits fiscais, que serviram para amortizar os restos a pagar – pagamentos deixados de um exercício para outro, que a LRF admite, desde que existam recursos em caixa para liquidá-los. No ano passado, foram deixados R$ 1,1 bilhão de restos a pagar, quase integralmente liquidados em outubro.

A prefeita Marta Suplicy governou com as burras abertas. Entre 2001 e 2003, as despesas com pessoal cresceram de R$ 3,5 bilhões para R$ 4,5 bilhões, um aumento de mais de 28% engordado, em grande parte, pela criação de 2.126 cargos de confiança, que custam R$ 100 milhões por ano. Obras foram contratadas sem que houvesse preocupação com o desempenho da receita. O orçamento em vigor, por exemplo, prevê receita de R$ 14,5 bilhões, mas não deverá realizar mais que R$ 13,7 bilhões. Resultaram disso tudo déficits correntes que cresceram de ano para ano. Segundo dados fornecidos pelo gabinete do vereador Ricardo Montoro, até o final de outubro havia uma diferença de R$ 450 milhões entre as despesas assumidas e a receita. Os empenhos não liquidados somavam R$ 1,647 bilhão e o montante bloqueado no orçamento era de R$ 750 milhões.

Ou seja, a Prefeitura não tem como pagar as despesas que contratou e, ao mesmo tempo, cumprir a LRF. A saída clássica para esse tipo de situação é cancelar empenhos e não reconhecer títulos emitidos pelos fornecedores – um calote que empurrará para a próxima gestão o pagamento da dívida.

E note-se que a situação crítica permanece apesar da ajuda que a prefeita recebeu do presidente e correligionário Lula, que por medida provisória adiou em pouco menos de um mês o prazo de pagamento das prestações da dívida consolidada, dando à Prefeitura de São Paulo um alívio deR$ 100 milhões, em setembro. Ao futuro prefeito não restará outra saída a não ser promover um grande ajuste fiscal – que deveria ter sido iniciado há quatro anos –, à semelhança do que fez o governador Mário Covas, quando assumiu o governo do Estado. E José Serra já anuncia que fará isso, começando pela extinção dos cargos de confiança criados por Marta Suplicy para aparelhar’ a administração municipal. A equipe que prepara a transição do governo estuda também as medidas que foram tomadas pelo governador Aécio Neves para endireitar as finanças mineiras. Se José Serra não adotar medidas corajosas, a cidade de São Paulo ficará sujeita às sanções da LRF. Essa será a herança deixada por Marta Suplicy aos paulistanos.

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Herança maldita

Folha de S.Paulo (editorial, 6/11/2004)

Do início do ano até o mês de setembro, a média mensal dos gastos autorizados pela Prefeitura de São Paulo foi de R$ 1,09 bilhão. Em outubro, a despesa caiu 52,6%, atingindo R$ 515,7 milhões, de acordo com reportagem publicada ontem por esta Folha. Os dados indicam que a prefeitura tenta frear bruscamente seus gastos para contornar uma situação deficitária que já coloca em risco a prestação de serviços públicos essenciais, como a varrição de lixo, que sofreu um corte drástico.

O déficit estimado das contas municipais está em cerca de R$ 490 milhões, mas a realidade pode ser ainda mais difícil caso se confirme a suspensão de pagamentos a fornecedores -o que a prefeitura tem negado apesar das evidências.

Para agravar a situação, essas restrições de curto prazo inscrevem-se numa espiral extremamente preocupante de endividamento do poder público municipal. Em valores atualizados, em 1992, a administração de Luiza Erundina deixou a cidade com uma dívida de R$ 4,7 bilhões. Paulo Maluf a elevou para R$ 12,6 bilhões, em 1996, e Celso Pitta para R$ 21,6 bilhões, em 2000. No final do mandato de Marta Suplicy, o montante estará próximo de R$ 30 bilhões.

Em grande parte a escalada se explica pelo fato de a dívida, sobre a qual incidem juros de 6% ao ano, ser corrigida por um índice de inflação (o IGP-DI) que reflete mais fortemente a cotação do dólar. Com as desvalorizações do real, esse índice subiu de maneira desproporcional à inflação para o consumidor e ao aumento das receitas.

Além disso, depois de um esforço inicial de equacionamento das finanças de São Paulo, a prefeita Marta Suplicy parece ter considerado que a relação custo-benefício de conter despesas para melhorar o perfil da dívida não seria vantajosa num cenário em que a renegociação já se afigurava como provável. Contando, então, com o apoio federal, a prefeita apostou no fato consumado do endividamento insustentável e abriu os cofres para tentar a reeleição.

Nessas circunstâncias, o prefeito eleito José Serra será compelido a promover um intenso ajuste fiscal e, ao mesmo tempo, reunir condições políticas para renegociar a dívida. Eis uma herança que também poderia ser chamada de maldita.

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Comerciante, São Paulo.