Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre história e responsabilidade

Em abril do ano passado, a Folha de S.Paulo publicou suposta ficha criminal da então ministra da Casa Civil Dilma Roussef. O motivo do alarde seria o registro de ações ilegais realizadas durante os anos 1960, por conta da resistência ao regime militar, pela possível candidata do Partido dos Trabalhadores à presidência da República. Pouco tempo depois, o próprio jornal teve que reconhecer a falta de fiabilidade do documento, reproduzido de e-mail enviado por leitor.

Pese o absurdo do fato, os militantes dos partidos de oposição realizaram verdadeira campanha de desmoralização da líder petista na internet, em função de seu histórico ‘criminoso’. Essa situação tem se estendido até os dias de hoje e a ação velada da oposição, partidária ou não, ganhou novo impulso após a reorientação estratégica da propaganda peessedebista, a qual passou a vincular a concepção petista de Estado regulador e promotor de desenvolvimento a tendências politicamente autoritárias.

Não bastasse a problemática divulgação da ‘fonte’, a campanha empreendida contra Dilma incorre em desrespeito para com todos aqueles agentes sociais que lutaram contra o terror de Estado promovido pela ditadura brasileira. Ao despolitizar e descontextualizar o comportamento de milhares de indivíduos, apresentando suas ações como crimes, o discurso oposicionista, balizado pela grande mídia, deseduca a população e desconstrói, falaciosamente, a história recente do país.

Uma mídia criteriosa e séria

Mesmo aqueles que apelaram à ação armada, o fizeram com objetivo político, e não, como o tom das ‘denúncias’ propõe, o enriquecimento ilícito e proveito pessoal. A própria ação armada só pode ser compreendida como resposta, talvez desesperada, contra o autoritarismo, a censura e os crimes bárbaros cometidos nos porões da ditadura. No regime de exceção levado a cabo pelo comando militar e sustentado pela elite civil do país não havia espaço para oposição aberta efetiva. Na inexistência de liberdade de pensamento e de expressão, o terreno da ilegalidade, armada ou não, era destino comum da resistência democrática.

Assim, à falta de compromisso ético daqueles que insistem no argumento, se mescla a falta de responsabilidade política e também histórica. A atual luta pela abertura dos arquivos da ditadura, empreendida por historiadores e cidadãos politicamente conscientes, reivindica a divulgação de muitos documentos ‘verdadeiros’, ou seja, produzidos pelo Estado durante os anos de chumbo. Contudo, isso não poderá implicar em leituras simplistas das fontes, nem por historiadores, nem por jornalistas.

A crítica do documento exige não somente a averiguação de sua autenticidade, mas a análise interna do texto: toda a informação nele contida é politicamente mediada, ou melhor, todo documento é fruto de uma relação de forças. Nenhum texto forjado pelo Estado repressor desenhará uma imagem positiva de seu opositor. E nenhum analista sério pode tomar seu conteúdo sem refletir sobre as condições de sua produção.

Portanto, História se faz com muito estudo, reflexão e crítica de fontes. Falar de história não é privilégio de historiadores, mas falar responsavelmente de história tampouco: é a obrigação de quem se quer politicamente atuante e pressuposto para uma mídia criteriosa e séria, comprometida, em primeiro lugar, com o público leitor.

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Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)