Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre jornalismo e polarizações

Os mais recentes artigos que publiquei na imprensa e neste Observatório sofreram algumas objeções de dois caros amigos. Ambos com trajetória política intocável e magnífico estofo teórico. Segundo o primeiro deles, o professor Ivan Cavalcanti Proença, utilizo-me da candidatura Alckmin para, fechando o círculo em uma polarização falsa, ignorar a existência de alternativas que surgem no processo político brasileiro. Assim, os textos, na visão de Proença, seriam ‘uma montanha de equívocos’. Algo que se afigura como metafísica espontânea, operando nos marcos de uma lógica binária.

Professor universitário e doutor em Literatura Brasileira, Ivan tem uma vida marcada pelo desassombro e a combatividade. No golpe de 1964, então capitão do Exército, usou um tanque para libertar estudantes que, reunidos na Faculdade Nacional de Direito, eram alvo de tiros de tropas golpistas. O ato lhe custou prisão e supressão de direitos políticos. Luta até hoje por uma anistia efetivamente ampla. Continua atuante, agora como conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Outro crítico que, pela estatura ética e militância no campo socialista, não pode ser ignorado é o jornalista Cid Benjamin. Integrante da resistência armada contra a ditadura, foi preso, torturado e viveu no exílio por quase 10 anos. Retornando ao país, ajudou a organizar o PT e esteve na sua direção nacional. Recentemente filiou-se ao PSOL. Suas análises de conjuntura primam pela acuidade. Não comportam chavões ou qualquer tipo de reducionismo. É um ator político relevante.

Para ele, os artigos não demonstram visão mais crítica do governo Lula. Afirma que ‘foi-se o tempo em que o PT e seus aliados tinham um projeto de mudanças para o país. Hoje, transformaram-se todos em meros ‘lulistas’, interessados na reprodução do mandato do presidente. Da mesma forma, a aliança PSDB-PFL não tem um projeto diferente. Disputa apenas a chave do cofre’.

De fato, são dois bons combatentes, mas não estão imunes a equívocos. Não se trata de ignorar erros cometidos pelo PT. Eles foram graves e foram objeto de discussão no 13º Encontro Nacional do Partido. O que não podemos é, abdicando da reflexão crítica, tomar como parâmetro o senso comum midiático. Este, como afirmamos na edição nº 376 [ver remissão abaixo], vê-se como um ‘parlamento sem voto’, falando em nome de uma fluida opinião coletiva. A imprecisão, contudo, não deriva apenas da crença nas próprias representações. O fato de os meios de difusão de massa serem os principais aparelhos de hegemonia produz características singulares na suas práticas discursivas. A permeabilidade às demandas das várias frações de classes dominantes é, como alertou há 25 anos Javier Esteinou Madrid, a marca distintiva da mídia moderna. Nas palavras do pesquisador do Centro de Serviço e Promoção Social da Universidad Iberoamericana, isso possibilita ‘a participação de todos os segmentos detentores de poder político e econômico no processo de reconstrução massiva da superestrutura de legitimação social’.

O capitalismo, ao redefinir sua esfera pública, esvaziando as instituições clássicas de representação, estabeleceu novo recorte na atuação jornalística. É nesse contexto, conforme assinalou o professor Aloysio Castelo de Carvalho, em belíssimo artigo, que os meios de comunicação ‘colocaram-se na condição de verdadeiros representantes da opinião pública, sinalizando para a possibilidade de se constituírem na principal fonte de legitimidade do sistema político.’ A rigor, podemos dizer que as diversas frações deste ‘público’ editam jornais e escrevem colunas.

A essência do cenário

O que não deve ser ignorado é o fato de o campo informativo ser atravessado por contradições. E, em momentos históricos específicos, ser deslegitimado pela percepção de setores subalternos que não participam dos processos de produção e distribuição do noticiário. Se parecem conformar corações e mentes, tanto o jornalismo impresso quanto sua versão eletrônica não substituem a consciência social originada das condições concretas de vida e trabalho. Em situações-limite, ou a pauta é mudada ou o divórcio entre o discurso reiterado e o sentimento de parcela expressiva da sociedade põe em risco a própria razão de ser do aparelho.

Quem vislumbra no quadro político ausência de diferenciação entre o atual governo e o anterior, ignora a eficácia redistributiva dos programas setoriais executados nos últimos três anos. Desconhece que o crédito consignado injetou R$ 31 bilhões na economia sem provocar inflação. O uso de políticas sociais no fortalecimento do mercado interno foi desdenhado por colunistas econômicos que rezam pela cartilha monetarista de suas fontes mais caras. Ao mesmo tempo, muitos prenunciavam que a estratégia de incremento de exportações não tinha consistência. A política externa, que pugnou por uma integração latino-americana fora de marcos subalternos, foi alvo de toda sorte de críticas. Os saudosos da Alca e de acordos bilaterais de livre-comércio com os Estados Unidos como única alternativa possível dispuseram de farto tempo televisivo e generosos centímetros/coluna em jornais e revistas. Polarização falsa só existiu para os segmentos médios que se contentam com a informação hegemonizada. Ou para um tipo de esquerdismo que costuma embalar salões burgueses com seu rigorismo de clichê.

Achar, como alguns analistas, que a popularidade de Lula se deve a uma mídia eletrônica favorável é reduzir o homem comum ao ‘vidiota’ de Jerzy Kosinski. Além de atestar total alheamento ao conteúdo dos telejornais, mostra como é tolo o funcionalismo dos ‘iluminados’. Talvez estejam perdendo a essência do cenário político: a confirmação irônica da assertiva de FHC, segundo a qual ‘pobre quando chega lá em cima acha que é diferente’. Pode ser que este governo tenha mostrado que é diferente mesmo. E para melhor. Pena que a ‘organização criminosa’ de editorialistas não tenha visto algo novo. Preferiram o denuncismo raivoso. Uma pena, né?

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Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro