A discussão sobre a exigência do diploma para exercer a profissão de jornalista merece um outro ponto de vista, não longe dessa arenga, claro. Quero refletir sobre as mudanças da modernidade (ou pós-isso) e o papel dos sindicatos e da sua federação.
Um dos elementos-chaves das mudanças é o fato da era Gutenberg estar se extinguindo ou, pelo menos, deixando de ser o foco da comunicação. Traduzindo: as notícias já não precisam de tinta e papel para circular. Desconfio (porque não tenho a numerologia) que a maior parte dos fatos ou acontecimentos (como diria Mouillaud) já está na internet; a notícia já não precisa virar jornal ou revista para ser notícia. E tem mais – atenção, irmãos de fé! – boa parte do que circula como informação não é produzido por jornalistas.
Enfim, estamos apenas no começo de algo que se avizinha maior que o tsunami. Todo mundo vai virar fonte, todo mundo vai produzir notícia, todo mundo é notícia. A única saída é fechar a internet e proibir as pessoas de falarem, fotografarem e escreverem. Ou então, estabelecer: só pode fazer notícia, escrever notícia, distribuir notícia quem fizer um curso superior de Jornalismo. Não vai ser fácil estabelecer esta censura. Com a ágora cibernética mundial, misto de clube de amigos e espaço de xingamento planetário, lugar onde se pode saber o que ocorre na Eslovênia ou na Manchúria antes dos jornais, todo mundo vai querer escrever, mostrar sua foto, fazer ‘reportagens’, fazer-se de jornalista, pelo menos.
Enunciadores se transformam em um só
A internet está pondo em xeque a imprensa. Como dizer o que já foi dito? Como mostrar o que já foi mostrado? E, do ponto de vista ideológico, como manter o pensamento único se todo mundo agora tem acesso a outras fontes, isto é, o ‘pensamento único’ se tornou apenas o pensamento um? Hoje é corrente que qualquer pessoa tem acesso a várias versões do mesmo fato; são versões que se contrapõem ou se somam aquilo que foi dito em tom maior.
E não é de agora. Quando os Estados Unidos resolveram invadir o Iraque, a grande imprensa mundial (e os clones nacionais) reproduziu os releases do Departamento de Estado norte-americano garantindo que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. Mas quem tinha um computador e acesso à internet sabia que era mentira, tratava-se de um saque, um roubo. Quando os grandes veículos e seus pequeninos repórteres instalados em Nova York ou Bagdá disseram que não havia armas de destruição em massa, o sujeito lá em Quixeramobim, Ceará, no seu barraco, onde pega mui rudimentarmente a internet, falou baixinho: ‘Ôxe, mas eu já sabia disso…’ Ele e boa parte do mundo.
Este é apenas um exemplo de como a grande imprensa (e nossos valores guerreiros da notícia) deveria pensar duas vezes antes de espalhar uma mentira, ou pelo menos uma meia verdade (o que dá no mesmo). O que não está acontecendo.
Vamos considerar, como Nelson Traquina, que a ‘teoria conspiratória’ de Noam Chomsky seja uma espécie de teoria hipodérmica ideológica sobre os profissionais. Isto é, a tese de Chomsky de que os jornalistas obedecem aos patrões que, por sua vez, impõem interesses ideológicos e de Estado, estaria furada. Acontece, porém, que há algo na notícia e em quem traz a notícia – o jornalista – que nos sugere Chomsky. Quando os enunciadores se transformam em um só – pelo querer ou não do patrão – é porque tem algo muito troncho na categoria dos jornalistas. E isto é assunto para os sindicatos. Qual a posição do sindicato, ou da Fenaj, quando o jornalista mente, engana a sociedade? Parece que nenhuma.
Objeto de uso restrito
Com a multiplicação das fontes, é sabido que a grande imprensa (burguesa, capitalista, cada vez mais um partido político, como quiserem tratar) continua cometendo seus grandes crimes; fazendo suas grandes bobagens; distribuindo seus grandes xingamentos… E a sociedade não tem muitas opções para reagir. Conta-se nos dedos da mão esquerda os poucos espaços de análise e crítica da mídia. Aqui tem o Observatório da Imprensa, e acolá o recifense Fopecom, mais adiante alguns sítios acadêmicos, mais uma ou outra ONG… e pronto. Acabou. Por que os sindicatos não entram nessa? Corporativismo?
Os sindicatos têm grandes desafios neste momento. Desafios do lado de fora e do lado de dentro.
O que farão os sindicatos dos jornalistas e a Fenaj diante do fato de que pedreiros e marceneiros, motoristas de caminhão, garis, estão fazendo rádiojornalismo em rádios comunitárias? Vão denunciar à Polícia Federal? À KGB? À CIA? Ou apenas ao Ministério do Trabalho? Em todas as boas rádios comunitárias há essa realidade: o rádiojornalismo, ou seja lá o que for, acontece. Isto é crime? Se for, a quadrilha hoje deve superar 50 mil meliantes. Dentro de um ano esse número vai dobrar. E vai sempre aumentar. Haja presídios para botar tanta gente.
Ironias a parte, se a Fenaj e os sindicatos defendem tanto a liberdade de expressão e a democracia na comunicação, não podem limitar o direito a liberdade de expressão ou o fazimento da democracia (como diria Darcy Ribeiro) a uns poucos, aos da entidade, aos da corporação, aos ricos e belos que conseguiram obter um diploma. Isto é, a democracia ou a comunicação não podem ser objeto de uso restrito daqueles que dominam determinado campo (Bourdieu).
Governador sem crítica alguma
O jornalismo comunitário está crescendo apesar das botinadas estatais, da legislação, do governo Lula. E ele não descarta o jornalista formado. É isso que os sindicatos (incluindo alguns de radialistas que desprezam quem faz rádio comunitária e defendem o patrão) dos jornalistas não perceberam. O jornalismo no Brasil dará um grande salto quando jornalistas formados se unirem aos jornalistas (ou repórteres) não formados para fazer comunicação.
Esta é a primeira sugestão.
A segunda é: os sindicatos e a Fenaj não podem ficar omissos diante das barbaridades cometidas contra a sociedade pela grande imprensa. Minha proposta é de que cada sindicato de jornalistas tenha uma ouvidoria para avaliar a atuação dos jornalistas. E que essa ouvidoria aja de forma honesta e objetiva em defesa dos interesses maiores, com ampla divulgação dos erros e acertos da categoria. Devemos ser corporativos com os interesses maiores da sociedade, e não dos coleguinhas que abusam do seu poder e do crachá de jornalista para defender patrão, seu dinheiro, sua armações e até sua má-fé – coisas, aliás, que acontecem em todas as categorias.
Se já tivéssemos ouvidorias funcionando no Brasil, certamente alguns jornalistas de projeção nacional não estariam cometendo as baixarias que cometem hoje. E melhor ainda seria seu efeito nas localidades.
Por exemplo, 99% dos jornais (e jornalistas) do Distrito Federal não conseguem publicar uma linha de crítica ao atual governador José Roberto Arruda. Não se trata do autor deste artigo ser contra ou a favor de Arruda, mas de defender o jornalismo. Porque não é preciso ser crítico de jornalismo para perceber que Arruda ainda não chegou à perfeição divina e, portanto, deve cometer seus erros. O que aparece nos jornais de Brasília, porém, é coisa de outro mundo: é Arruda inaugurando obras, Arruda obtendo recursos, Arruda defendendo a cidade.
Isto é jornalismo? Qual a opinião da sociedade sobre esse jornalismo? Talvez o jornalista esteja sendo pressionado. Talvez seja uma opção sua. Mas caberia ao sindicato denunciar a verdade.
Arrogância é ardil dos medrosos
No interior do país, as coisas são mais dantescas. Lá, o poder local (executivo, judiciário, legislativo) muitas vezes não aceita uma imprensa crítica; pelo contrário, é comum o executivo financiar uma imprensa servil. O que o sindicato diz disso? Nada? Pois a sociedade precisa exatamente é de uma instituição que receba as suas críticas ao mau jornalismo, às falcatruas, às aberrações da profissão.
Com as ouvidorias nos sindicatos, a sociedade poderia questionar o papel do jornalismo e do jornalista, tornando-se um apoio para o cidadão e para a cidadã, hoje desprotegidos, à mercê do poder local que domina a imprensa.
Por princípio um ente autônomo, o sindicato dos jornalistas tem todas as condições de exercer esta função. Na verdade, em alguns sindicatos existe um ‘comitê de ética’ ou de ‘liberdade de expressão’. Mas é um apêndice limitado do sindicato, ele não supre a carência da sociedade de aliados na luta contra o jornalismo de má qualidade, que não é questão de ter ou não diploma.
A criação de ouvidorias nos sindicatos dos jornalistas romperia as barreiras estabelecidas entre os pretensos arautos da verdade e da decência, colocaria no seu devido lugar o jornalismo ruim, faria com que nós, jornalistas, nos aproximássemos mais do nosso público (Wolton revela que poucos jornalistas estão interessados em saber como é seu público), aprendendo sobre realidade, gente, povo, sociedade, pessoas, seres humanos, cidadania… Essas coisas que uma boa parte da categoria despreza. Com as ouvidorias em funcionamento, estaríamos abrindo um debate com a sociedade sobre o jornalismo e os jornalistas. Ah, sim, poucos têm coragem de fazer isso. Entendo: a arrogância é o ardil maior dos medrosos.
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Jornalista, escritor, autor de livros sobre rádios comunitárias e diversos artigos sobre democracia na comunicação