Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre ideias, hipóteses e teorias científicas

Em 28/10, o jornal Estado de Minas publicou a matéria “Teoria da Evolução e Big Bang são reais e não contradizem fé cristã, diz Papa Francisco”, de Gabriella Pachedo, segundo a qual eis que finalmente teríamos descoberto que a “teoria da evolução é real”. É uma abordagem problemática, pois deixa no ar uma ideia equivocada a respeito do que seriam as teorias científicas.

Cabe aqui lembrar que um dos comentários equivocados mais comuns a respeito da teoria da evolução por seleção natural, emitido principalmente (mas não exclusivamente) por parte de críticos que estão fora da arena científica, diz mais ou menos o seguinte: “O problema da evolução é que se trata apenas e tão somente de uma teoria.” Há ao menos dois equívocos graves em comentários desse tipo. Em primeiro lugar, uma falta de clareza a respeito do que são teorias científicas e do papel que elas desempenham. Segundo, a crença de que uma teoria científica seria algo desprovido de vínculos com a realidade e, portanto, algo sem importância ou de importância secundária.

Para começo de conversa, é necessário registrar o seguinte: nenhuma teoria científica – e a teoria da evolução por seleção natural talvez seja a mais influente de todas elas – é um amontoado de opiniões disparatadas ou de caraminholas que brotaram repentinamente na cabeça de um gênio inspirado. Uma teoria científica é um conjunto articulado de ideias (conceitos, modelos etc.) cuja elaboração em geral resultou do trabalho duro e persistente de vários estudiosos, ao longo de sucessivas gerações. Os termos e o formato atual de qualquer teoria são, portanto, o resultado de um processo histórico.

Cabe ainda notar que a ciência como um todo não é feita de “fatos crus” ou de “verdades absolutas”, mas sim, de teorias. Tudo o que constitui o chamado conhecimento científico pode ser visto como um edifício em construção (ou reconstrução) que está sendo erguido (ou reerguido) a partir de algumas ideias fundamentais. Em outras palavras, a ciência ordinária é um expediente que visa a criar representações consistentes a respeito do mundo.

Nem todas as ideias que temos são comprováveis

Na opinião de muitos filósofos e historiadores da ciência, toda e qualquer área do conhecimento que reivindique para si o rótulo de disciplina científica deve ser capaz de gerar proposições preditivas a respeito do mundo. A pertinência de tais proposições deve estar sujeita a avaliação, notadamente por meio de algum teste empírico, uma espécie de teste por meio do qual seria possível verificar se há alguma correspondência apropriada entre a proposição e aquilo que mundo exterior “nos diz”.

De tudo o que nós, seres humanos, somos capazes de imaginar, apenas um subconjunto bastante particular é formado por ideias verdadeiramente científicas. Diz-se que uma ideia é científica quando ela é objetivamente comprovável por meio de dados empíricos. Nem todas as ideias que temos são comprováveis. Entre aquelas que o são, algumas são comprováveis empiricamente, outras apenas teoricamente. Entre as ideias que são comprováveis empiricamente, algumas o são de modo direto, outras apenas de modo indireto.

A distância entre as margens de um caderno, por exemplo, pode ser estimada de modo direto, bastando para isso lançar mão de uma régua escolar. A distância entre duas cidades é comumente estimada de modo indireto (e.g., em um mapa), embora alguém no passado deva ter feitos medições diretas. Existem, no entanto, muitas distâncias que só podem ser estimadas de modo indireto, como é o caso da distância entre a Terra e o Sol e da distância que separa qualquer par de estrelas em uma constelação.

Testes experimentais como critério

Um tipo de teste empírico particularmente valioso é o teste experimental, por meio do qual o observador pode intervir deliberadamente em um sistema sob estudo – e.g., controlando a quantidade da luz que incide sobre várias amostras de sementes. A realização de experimentos nos permite ampliar e aprofundar o conhecimento científico que temos a respeito do mundo. A explicação para isso é que tal metodologia nos permite identificar e, muitas vezes, isolar e quantificar a contribuição relativa de diferentes variáveis que afetam o comportamento de um sistema particular. Assim, tendo constatado que determinada quantidade de luz estimula a germinação, o observador pode investigar em seguida a influência da qualidade da luz (i.e., a contribuição relativa dos diferentes comprimentos de onda).

No mundo da ciência, os palpites do observador são comumente expressos por meio da formulação de hipóteses. No âmbito das ciências experimentais, mais especificamente, uma hipótese pode ser definida como um palpite bem informado a respeito dos resultados de um teste – e.g., um palpite sobre a influência (positiva ou negativa) que diferentes comprimentos de onda teriam na germinação das sementes. Diante de duas ou mais hipóteses conflitantes ou mutuamente excludentes, a realização de testes experimentais permitiria ao observador escolher a mais apropriada. A ideia é reter a hipótese que mais bem se ajusta aos resultados obtidos, descartando (temporária ou definitivamente) as hipóteses concorrentes. Por meio da realização de testes gradativamente mais detalhados e rigorosos, as proposições científicas se tornam cada vez mais precisas e refinadas.

Cabe registrar que nem sempre é possível verificar a pertinência de uma proposição por meio de testes experimentais. Veja o caso da astronomia, da cosmologia e da geofísica, disciplinas científicas dedicadas ao estudo de objetos e fenômenos que dificilmente podem ser submetidos à experimentação direta. Em casos assim, o investigador deve se guiar com base em dados e informações obtidos por vias indiretas.

Proposições preditivas e explicações

Além de formular predições, uma disciplina científica deve ser capaz de elaborar explicações a respeito das coisas do mundo. Tanto as previsões como as explicações devem ser consistentes, o que significa dizer que os seus desdobramentos devem estar de acordo com o “mundo exterior”.

Prever e explicar são objetivos que toda disciplina científica almeja alcançar, mas que em geral se manifestam por meio de duas entidades distintas, as hipóteses e as teorias. Um jeito simples de ressaltar a diferença entre hipótese e teoria é dizer que as hipóteses preveem, enquanto as teorias explicam.

Enquanto muitas hipóteses são expressas em uma única assertiva, as teorias são mais bem caracterizadas como narrativas mais ou menos complexas. Nem toda narrativa, contudo, é uma teoria científica. Para ser vista como tal, a narrativa deve integrar argumentos (verbais ou matemáticos) cujas assertivas foram previamente submetidas a algum tipo de teste empírico. Esse é o caso da teoria da relatividade, da teoria atômica e da teoria da evolução por seleção natural – três narrativas que integram conceitos, leis e hipóteses sobre determinados fenômenos do mundo.

Em resumo, a elaboração de uma teoria científica requer que dois critérios sejam atendidos: coerência lógica e correspondência com a realidade. O primeiro tem a ver com o modo como as afirmações feitas pela teoria estão conectadas entre si e com o corpo de conhecimento mais amplo, dentro do qual a teoria está inserida. O segundo tem a ver com o modo como as afirmações feitas estão de acordo com os fatos conhecidos e, no caso das ciências experimentais, com os resultados de testes experimentais.

Progresso científico

Os registros históricos indicam que o progresso científico é mais uma questão de refinamento teórico do que de mero acúmulo de dados e informações. E esse processo de refinamento inclui tanto o abandono de ideias equivocadas como a formulação de novas teorias.

Uma teoria sobrevive enquanto é capaz de oferecer respostas apropriadas às perguntas que fazemos. Diz-se que há uma “crise epistemológica” quando uma teoria já não é mais capaz de explicar uma determinada classe de fenômenos (i.e., dados “brutos” ou resultados de testes experimentais) ou quando certos fenômenos passam a contradizer o que está estabelecido. No decurso de uma crise, os novos achados passam a ser tratados como “anomalias”, sendo então deixados de lado (ao menos durante algum tempo). À medida que a quantidade de resultados anômalos continua a aumentar, a sobrevivência e o status quo da teoria até então hegemônica são postos à prova. Cedo ou tarde, a teoria terá de enfrentar os resultados anômalos.

Tento constatado que os resultados anômalos não foram produzidos por problemas metodológicos ou por algum outro tipo de distorção, um número crescente de investigadores tende a se debruçar sobre eles. Muitas vezes, chega-se a um ponto em que fica claro que o problema não está nos resultados, mas no próprio corpo da teoria. De acordo com alguns filósofos e historiadores da ciência, esse tipo de impasse costuma ser resolvido por meio de uma ruptura ou revolução científica: a teoria corrente deve ser abandonada, em detrimento de uma nova teoria.

Todavia, os cientistas dificilmente abandonam uma teoria velha e problemática sem que haja ao menos o esboço de uma teoria alternativa. A nova teoria deve ser capaz de lidar com os resultados até então considerados “anômalos”, os quais a partir de então passam a ser tratados como resultados “normais”. Em outras palavras, após um período revolucionário, as anomalias passam a ser citadas como exemplos.

Quantidade e qualidade das teorias

O progresso de uma disciplina científica depende da quantidade e, sobretudo, da qualidade de suas teorias. Quanto mais madura uma disciplina científica, mais e melhores teorias ela terá. Veja-se, por exemplo, a grande diferença que há entre a física e a biologia.

A física é uma disciplina científica bem mais madura. Não apenas porque é uma disciplina mais antiga, mas principalmente porque as suas teorias são bem mais precisas e refinadas. A biologia é uma ciência incomparavelmente mais rica em detalhes descritivos, mas as suas generalizações ainda são relativamente imprecisas e, em muitos casos, bastante grosseiras. A teoria da evolução por seleção natural é não apenas uma das poucas teorias biológicas de amplo alcance, mas também a mais importante delas.

Ocorre que, ao contrário de teorias científicas de cunho e formulação mais abstratos (como é o caso da teoria da relatividade), a teoria evolutiva costuma ser apresentada em termos exclusivamente verbais. Tal formulação emana um ar de simplicidade lógica, dando a falsa impressão de que o assunto é facilmente acessível ao senso comum – alguns jornalistas chegam a emitir os seus próprios palpites, a exemplo do que fazem com os jogos de futebol, as intrigas palacianas, os programa de TV e outras coisas do gênero. ocorre que o conhecimento científico, diferentemente do que alguns observadores parecem imaginar, não é propriamente uma questão de gosto ou preferência individual. No médio e no longo prazo, a cortina de fumaça que cerca momentaneamente a arena científica é dissipada, restando apenas o que importa: conceitos, modelos, hipóteses, teorias etc. – i.e., ideias que em boa medida têm norteado o pensamento e a aventura humana sobre a Terra.

******

Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª edição, 2014)