Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sociedade das palavras novas

O novo milênio chegou abarrotado de novas palavras. Algumas continuam chegando e outras ainda estão em viagem. Afinal, semelhando os fenômenos que viajam na velocidade da luz, algumas já existiam em outros universos, mas apenas agora chegaram até nós. Outras já existiam, vivem entre nós como ETs disfarçados. A abreviatura de extraterrestre pegou de vez, por obra do filme de Steven Spielberg. É claro que outras vão saindo de fininho. Não porque foram abduzidas, mas porque perderam a antiga força. Numa palavra, envelheceram, como na frase ‘o mosco estrafegou as poderes’.

É uma frase cujo significado poucos entendem. Mas, escrita em português, pode ser interpretada com a ajuda de um dicionário, afinal a estrutura é simples: sujeito, verbo e objeto direto. Ou, sujeito, predicado e complemento.

Em resumo, alguém, que não sabemos quem – pessoa, animal, peixe, ave, inseto – fez alguma coisa. Por intuição, o brasileiro sabe que ‘estrafegou’ pertence ao verbo ‘estrafegar’ e está no passado, no chamado pretérito perfeito, na terceira pessoa do singular. Se, porém, significasse ‘o mosco explodiu uma bomba’, daria tempo de fugir do perigo, mesmo sem saber o que significa mosco? Esclareça-se que, no contexto, ‘mosco’ não é o macho da mosca, mas indivíduo dos moscos, populações sediadas entre o Mar Cáspio e o Mar Negro; estrafegar evoluiu de trasfegar, do latim transfricare, esfregar muito, esfregar até rasgar; poderes, no caso, é plural de ‘podere’, antiga túnica sacerdotal. Com a ajuda dos dicionários, o entendimento é possível.

Latim do império

Agora, observe o texto que segue.

‘O metrossexual quase teve um peripaque zapeando a televisão. Sua ex, a usurpadora, arrasava com ele na telinha. Depois de comer uma pizza delivery, solicitou por e-mail que a secretária procurasse na internet o documentário exibido em pay-per-view, congelasse as melhores imagens e as remetesse em jpeg atachadas, nem que fosse pelo messenger. Do hotel, seguiu de van para o aeroporto, sem dar bola ao broother com cabelo black power que namorava uma gata linda na fila do check out. Depois de fazer o check in, já na sala de embarque, tomou o notebook e usando o sistema wireless para acessar o provedor, salvou em cedê e em disquete o status report que lhe passou o seu colega de orkut, que tinha feito check up por um serviço médico on line, em tempo real. Tinha aplique nos cabelos, freqüentava a academia e já se submetera a várias lipos. O adoçante e o aspartame tinham substituído o açúcar, e o cigarro light, o cachimbo e o charuto, mas ele precisava malhar mais, se quisesse manter a forma. Evitar refrigerantes com ciclamato tampouco era suficiente. Já dentro do avião, ao acomodar-se na poltrona, afivelou o cinto, fotografou disfarçadamente a aeromoça com o celular, aguardou a decolagem, conferiu se trouxera também o palmtop, mas não plugou nele os fones de ouvido. Aquela seria uma viagem tranqüila: ele curtiria o recente hit do hiphop da sua barraqueira preferida sem que ninguém o importunasse, pois inserira a gravação de seu último show no handheld. E se a vizinha reclamasse, ele chutaria o pau da barraca e diria à patricinha, nem que ela tivesse um chilique, que ela se parecia muito com uma garota de programa que ele vira no talk show da tevê a cabo, que depois foi repetido na tevê aberta, falando mal do mauricinho que não lhe pagara o programa.’

O texto, meio doido, é, entretanto, plausível, mas quantos o entenderão? Neste caso, os dicionários pouco ajudam. Afinal, há alguns anos, o Aurélio, um dos mais consultados do país, não tinha ‘ortopedista’ e ainda não tem peripaque, embora tenha chilique.

Vamos por partes. E-mail é desnecessário, pois é sinônimo de correio eletrônico, por meio do qual são enviadas as mensagens por computador; brother, irmão, em inglês, virou gíria para companheiro, camarada, amigo; notebook engana, pois não é caderno, como diz o dicionário, mas computador de colo; para wireless temos o português ‘sem fio’; relatório da situação substitui perfeitamente o status report; a pizza ainda não foi substituída por ‘pítiça’, mas provavelmente o será em breve; delivery designa conhecido serviço de entrega; check in é expressão que, no Brasil, irritou o Prêmio Nobel José Saramago, pois final temos registro, despacho, conferência. Check up é examinar, sejam pessoas, carros, situações etc. Aliás, etc é abreviação de palavras latinas, assim como ‘laser’, raio, cujas abreviaturas de palavras inglesas ainda causam certa perplexidade, pois é muito parecida com lazer, do latim licere, ser lícito, verbo que virou substantivo. Mas, atenção, licitar, da mesma raiz, não é divertimento nem entretenimento. Outro raio continua sem nome, é o raio X.

Algumas palavras surgiram na última década do século passado, outras são ainda mais recentes. O catarinense Paulo Roberto Falcão, astro de duas das melhores seleções brasileiras de todos os tempos, a das Copas da Espanha, em 1982, e do México, em 1986, que entretanto nem chegaram às finais, foi o primeiro metrossexual avant la lettre (expressão francesa consolidada no português!), indivíduo metropolitano, zeloso de sua aparência, apreciador de roupas de grife e freqüentador de manicures e cabeleireiros.

Mas a palavra precisava nascer no latim do império para ganhar o mundo. O autor da façanha foi o escritor inglês Mark Simpson, que a aplicou ao jogador David Beckham. Seu berço lingüístico foi a revista eletrônica Salon.com e nasceu de redução de metropolitan, metropolitano, acrescido de ‘sexual’, revelador dos motivos pelos quais se arruma tanto: ser desejado sexualmente.

Verbo sitiado

Jpeg é sigla que vai demorar a aportuguesar-se, pois tem três consoantes e apenas uma vogal: ‘Joint Photographic Expert Group’. Na gíria inglesa, ‘joint’pode ser baseado, que, sem base nenhuma é baseado, cigarro de maconha, mas cujo significado é união, junção, acréscimo. Photographic é fotográfico; expert é especializado; group, grupo. É tecnologia que designa ‘grupo que define padrões para foto ou vídeo digital’.

A mais recente é orkut, ‘site'(ainda não aportuguesado para ‘saite’, nem para lugar, sítio ou portal), criado pelo engenheiro turco Orkut Buyukokten, empregado da Google, com o fim de fazer uma rede de amigos na internet. O holandês Jean Van Pauteren, autor de confusa gramática latina, inventou regras tão absurdas que deu origem à palavra despautério. Com Orkut pode ocorrer algo semelhante: seu nome designará um fenômeno da internet que consiste em reunir amigos a milhares de quilômetros como se todos estivessem em mesinhas nas calçadas, mas, ó dor, sem chope. E aí a conversa perde a graça. Ou melhor: não há graças alcançadas pela intercessão de santo nenhum.

E Google, você sabe o que é? Já é sinônimo de buscador, ferramenta de pesquisa na internet. Você pode experimentar digitando seu próprio nome no espaço de ‘busca’. Quase tudo o que está na Galáxia Gutenberg, está também no Google.

Sem ‘ponto com’, porém, fica mais difícil. E a imprensa ainda faz pouco para explicar a ouvintes, telespectadores e leitores o que se passa no reino das palavras. Aliás, nas fronteiras do que elas expressam, que é a literatura, a imprensa vem se caracterizando por omissões terríveis. Degringolou de vez.

Os livros de qualidade não são mais resenhados. E, claro, assim ficam escondidos nas prateleiras do fundo, cedendo o espaço privilegiado das vitrines para auto-ajuda, auto-engano, ‘autotudo’, menos o principal ‘auto’: pensar por conta própria, escolher livros em metodologia diferente da escolha de candidatos que governam um país como se ele pudesse ir para a frente sem livros.

Bem, cala-te boca, muitas autoridades já foram longe demais sem livros. E sem palavras, então, nem se fala! E sem palavra, então? A norma é eleger-se com um programa, mas aplicar outro; dizer uma coisa e fazer outra. Já escrever uma coisa e fazer outra, é mais difícil. Falta o requisito: escrever. Mas requisito já virou pré-requisito, um monstrengo pleonástico que nossos legisladores, entre tantas colocações (o galináceo as faz com mais eficiência), puseram ao lado de ‘urgência urgentíssima’.

O ‘caminhão de panos quentes que fica estacionado na frente da casa de José Sarney’, de acordo com a boa verve de Moacir Japiassu (aliás, com dois romances belíssimos insuficientemente resenhados), acabou de invadir o Senado. E palavras indesejáveis e desnecessárias estão habitando entre nós.

O Verbo ainda habita entre nós, mas está sitiado. E não são liberadas verbas para combater os ferozes inimigos.

Algumas das mais recentes

Você vive sem metrossexual e já depende mais da telinha (televisão) do que da telona (cinema), mas sem acessar a internet, home page (página pessoal), blog (diário na internet), deletar (do inglês delete, apagar, cancelar, anular), email, (correspondência pelo computador) web (rede), log (registro).

E você vive ou conhece alguém que vive sem essas outras que aqui seguem? PC, redução de personal computer, computador pessoal: sim, ele nasceu fazendo contas, mas não as faz mais; não em casa, não para você; antivírus, check in (entrar na lista do vôo ou no hotel), check out (pagar a conta e deixar o hotel), ckeck up (exame geral: por exemplo, no cardiologista).

Uma delas é muito engraçada pelas lembranças que suscita. É boot, originalmente bota, que designou a própria, hoje bota do computador, onde você enfia disquete ou cedê, para gravar ou ouvir e ler; já se prestara a outras metáforas no inglês: the boot is on the other foot, a bota está no outro pé, isto é, a situação se inverteu; he has his heart in his boots, ele pôs o coração nas botas, isto é, está morrendo de medo; to boot out, chutar com as botas, isto é, demitir; he died in his boots, ele morreu em suas botas, isto é, em atividade, trabalhando; to lick someone’s boot, lustrar as botas de alguém, bajular: pobres engraxates! Mas a bota é mais conhecida atualmente por CPU, central processing unit, unidade central de processamento central.

Os periféricos vieram para ficar a nosso redor, com fio ou wireless, sem fio, mas a impressora já não dá mais conta sozinha. E recebeu ajuda do scanner (leitor e conversor de imagens e códigos; seu significado original é explorador), fax (do latim fac simile, fazer semelhante), som (redução de aparelho de som), home theater (teatro em casa: conjunto de som de alta fidelidade e tela grande, de alta definição) telefone sem fio (não é a mesma coisa que o celular, que em Portugal é telemóvel), celular, celular pós-pago, celular pré-pago, celular viva-voz (quem em Portugal é sem-mãos).

E as carências dos outros: sem-terra, sem-teto, meninos de rua, garota de programa (a prostituta elegante, mais para o metrossexual do que para as abandonadas). De todo modo, você não precisa ‘printar’ (do inglês print), é pernóstico dizer isso, você já tem imprimir.

Bem e, claro, a última, o gerundismo: a secretária ‘vai estar encaminhando’ não sei o quê, que você ‘vai estar assinando’. E portulano, você sabe o que é? Era o blog dos primeiros navegantes, quando ainda caravelas e naus singravam por mares de verdade e não em espaços virtuais – do latim medieval, eclesiástico e escolástico virtuale, pode se realizar, mas não o faz, fica quieto; de virtus, virtude, força; de vir, homem – mais ou menos com o He-man, ‘eu tenho a força’, que educou as crianças que hoje estão entre vinte e trinta anos.