Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Sociedades anônimas de informação fechada

Depois de muitos anos de militância no jornalismo, acreditava que nada de novo me surpreenderia no trabalho. Contudo, minha última passagem pela chamada grande imprensa me apresentou um cenário intrigante, mas que nada colabora com a boa circulação da informação. Executivos e dirigentes de algumas das grandes corporações da área do comércio e varejo não dão entrevistas sob quaisquer circunstâncias e têm assessorias apenas para dizerem laconicamente não. Na outra ponta, jornalistas especializados, como eu, que são obrigados a cobrir e garimpar notícias do setor, ficam desesperados com a pauta a cumprir e, principalmente, quando há à sua frente meia página de jornal para preencher em poucas horas. Fechando o triângulo surgem os leitores, que não recebem informações que podem ser de grande relevância para seu conhecimento.

Políticos comprometidos e acuados quando inquiridos pelos repórteres, costumam recorrer ao ‘nada a declarar’ porque invariavelmente têm culpa no cartório e rabo preso, mas companhias multinacionais sediadas em democracias historicamente consolidadas, com passado de contribuição relevante à sociedade e ao mercado de consumo, alegarem que não podem dar entrevistas por causa de sua política corporativa, não deixa de ser, em certas circunstâncias, uma afronta ao seu consumidor final que, naturalmente, não sabe disso. É surpreendente que várias dessas organizações, a maior parte sociedades anônimas, não se dispõem a dar entrevistas sob hipótese alguma e, por outro lado, quanto ao seu tempo, se precisam disparar seus press-releases com ofertas, promoções, inauguração de novas lojas, visitas de presidente, acordos e outras boas notícias que podem gerar lucros, recorrem imediatamente aos seus cadastros de jornalistas sem se lembrarem dos vetos anteriores. O cenário na prática produz um ciclo da comunicação no qual acaba sendo de uma via só.

Privado e estatal

Entre as razões do ‘nada a declarar corporativo’ estaria o compromisso com os acionistas, pois se algum executivo soltar alguma informação inoportuna ou indesejada poderia imediatamente comprometer o valor das ações nas bolsas e o interesse de investidores. Há ainda a questão estratégica porque desta feita a concorrência vigilante não teria acesso a inputs relevantes se a organização permanecer sempre calada, fechada, seja lá qual for o assunto. A medida drástica teria outras alternativas porque erros infelizes de divulgação poderiam ser evitados com um media training com answer/question bem feito e com certa atenção do porta-voz/fonte na hora da entrevista. Fácil, não é?

Nada mais justo nas relações públicas do que falar de coisas boas quando interessa, mas não seria também o caso de sonegar informações à mídia eternamente, quando esta está à procura de novidades relevantes para a opinião pública. A busca de outra fonte concorrente para substituir a estabelecida poderia ser a solução aparente se o mercado não fosse formado por grandes e poucos players, que são efetivamente os informantes. É preciso reforçar que ninguém é obrigado a dar entrevistas, mas sempre é bom verificar as circunstâncias e se elas não são uma policy anticomunicativa maligna para a opinião pública.

No mundo pós-moderno, as corporações divulgam com apreço seus projetos de responsabilidade social, novos sites e portais, blogs institucionais, projetos de sustentabilidade – a musa do verão – e comentam seus balanços, quando estes têm números convenientes de crescimento e vendas expressivas, mas o leitor não precisa apenas desse tipo de informação. Naturalmente, o que é estratégico, reservado, confidencial, secreto e ultra-secreto necessita, em princípio, ser respeitado, mas nem por isso tudo deveria de antemão ser sigiloso e hermeticamente lacrado como simplesmente certas empresas estabelecem. Fica a dúvida se algumas dessas respeitadas corporações não estariam adotando práticas informativas que governos ditatoriais já usaram em outras eras… Mas privado é uma coisa, estatal é outra.

O poder de Camões e das receitas

Ainda que grandes firmas boicotassem o trabalho de reportagem, quando este profissional estava pautado nunca deixava de tentar agendar a entrevista, mesmo que fosse prevista a negativa certeira da outra parte. Por dever ético e profissional, como jornalista entendia que era preciso contatar e solicitar sempre porque havia leitores do outro lado que estavam à espera de novidades relevantes. Era preciso demonstrar que a reportagem não esmorecia nunca e tinha compromisso com o leitor. Dada a seqüência de solicitações de entrevista, notava-se pelo telefone que certo assessor de imprensa pára-choque sempre ficava constrangido ao dizer que a empresa não falava com a imprensa. Outros desses assessores pediam quase desculpas e alguns não demonstravam qualquer embaraço, achando uma prática absolutamente natural negar sempre. Nesta hora ficava pensando: Por que razão gastam esses bons cifrões com o setor de assessoria de imprensa, já que qualquer secretária bem-educada poderia dar a negativa elegantemente? Para dizer não poderia, porque não, até ser um estagiário de algum setor como o jurídico ou marketing? Seria tudo mais barato, fácil, sem qualquer ônus.

A lógica dos dois pesos e duas medidas deveria ser observada aqui, uma vez que é recorrente entre os meios de comunicação de massa o alerta contra as práticas contrárias à liberdade de imprensa no âmbito estatal, mas dificilmente eles tratam da questão quando ela está acoplada ao ramo corporativo. A dúvida é se a verba e os investimentos de mídia publicitária não seriam o grande poder moderador neste caso? Na época, recordo-me que ficava tão consternado com aquelas negações que lembrava aquele menino que levava um ‘não’ quando pedia uma garota em namoro. Após as recusas secas permanecia matutando se a publicação em que atuava não deveria registrar o making of da matéria ressaltando o ocorrido na pauta quase derrubada. Uma pequena menção poderia significar muito: ‘Procurada pela reportagem, a empresa X Y Z & Cia. não quis se pronunciar sobre o assunto.’ O expediente tem sido usado tradicionalmente nas matérias de denúncia política e se a prática fosse adotada como norma editorial sistemática talvez algumas delas pudessem se sentir levadas à mudança de posição dada a imagem negativa e antipática que produziria no seu público-alvo de consumidores. É fato que, às vezes, a falta da notícia também pode ser notícia. O Brasil conheceu o poder dos versos de Camões e receitas de bolos que puderam dizer muito mais do que o aparente.

Felicidade está nas pequenas coisas

Um outro aspecto sobre a liberdade de imprensa é a questão do preconceito. Há corporações que costumam privilegiar apenas as entrevistas para alguns jornais peso-pesados em detrimento de outras publicações porque a penetração e a tiragem lhes interessam mais, midiaticamente falando. Novamente, o making of da matéria talvez fosse um recurso interessante para que elas dialogassem com os mais pobres: ‘Procurada por nossa reportagem, a empresa %@#*&+§ não quis se pronunciar sobre o assunto ou não quis dar entrevistas ou não respondeu o nosso contato.’

Um dado significante é que na hora de distribuírem seus press-releases, as companhias não fazem distinção quanto ao porte e poder de influência do veículo e as assessorias adoram quando um singelo jornal comunitário (com todo respeito a esta mídia) oferece meia página de espaço para seu comunicado de imprensa. Sendo assim, uma publicação, seja ela de bairro ou do mainstream press, mereceria a mesma consideração (ainda que a atenção fosse inevitavelmente diferente) por uma razão simples: ambas as mídias têm leitores do outro lado, olhando as notícias, reportagens e um jornalista profissional para produzi-las. Podem ser poucos ou muitos, mas sempre há leitores do outro lado que merecem alguma estima, senão a publicação nem existiria. Lembro-me de uma ocasião, quando era assessor de imprensa, em que um cliente não escondia o enorme desejo em constelar nas páginas das grandes publicações, mas foi por causa de um release contido numa discreta revista especializada que fechou um grande contrato de fornecimento do seu produto. Moral dessa história: às vezes, a felicidade está nas pequenas coisas…

A utopia no horizonte

Para ser franco não acredito remotamente que nos dias de hoje algum veículo possa fazer essas considerações em razão do imperativo publicitário, ainda mais agora, quando a propaganda está perdendo espaço para outros investimentos de marketing, com a concorrência mais acirrada e a mídia desgastando sua saúde financeira. Os jornais impressos parecem estar moribundos, a internet se solidifica como mídia publicitária, mas não como uma publicação jornalística clássica a ponto de derrubar governos, fazerem investigações incisivas ou revelarem irregularidades. Há um hiato informacional. O furo e a denúncia efetivamente não têm sido a prática dos portais horizontais e eles continuam brotando essencialmente nas revistas, jornais, agências de notícias e agora, às vezes, na televisão e rádio. Mas a mídia como um todo pode estar ficando cada vez mais refém dos interesses de mercado e isso esbarraria no bom jornalismo, tão necessário numa sociedade democrática.

É preciso pensar de todo modo a liberdade de imprensa de uma maneira mais ampla e não apenas na relação tradicional entre imprensa e governo, ainda que a pressão de mercado possa ser mais forte. A imprensa precisa achar novos caminhos quando eles estão fechados. Essa reação deve ser feita com inteligência, ousadia, respeito, cortesia e, obviamente, dentro da lei. O ônus do silêncio de ser creditado ao devido agente responsável no processo comunicativo para que não fique a dúvida ou impressão de omissão do veículo. Mas será que tudo isso é utopia? O grande jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano tem um pensamento a respeito: ‘A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.’

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Jornalista