Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Surto de miopia na primeira página

Foram dois – e não apenas um, a reeleição de Bush – os fatos históricos da semana passada.

O segundo foi a admissão do comandante do Exército do Chile, general Juan Emilio Cheyre, em carta a um jornal de Santiago, da responsabilidade da instituição militar pelos crimes do regime de Pinochet, que incluem o assassínio de mais de 3 mil pessoas e toda sorte de violações dos direitos humanos de inumeráveis outros chilenos.

A notícia foi publicada no sábado, no dia seguinte à divulgação da saída do ministro da Defesa brasileiro, José Viegas.

Como se sabe – mesmo porque ele deixou isso claro na carta de demissão entregue ao presidente Lula em 22 de outubro – Viegas deixou o governo por causa da revanchista manifestação do Exército justificando as violências da ditadura militar, depois que o Correio Braziliense publicou fotos que seriam do jornalista Vladimir Herzog, morto no DOI-Codi de São Paulo (ver adiante a nota ‘O general em seu labirinto’).

Só isso deveria levar os diários brasileiros – que nas semanas precedentes deram o merecido espaço às demandas pela abertura dos arquivos da repressão – a dar à carta do general chileno o necessário destaque nas suas primeiras páginas.

É bem verdade que, no Estado de S.Paulo, a notícia apareceu no canto superior direito da página – onde se supõe que o leitor bata o olho em primeiro lugar. Mas o magro tituleto em uma coluna (‘Exército chileno assume ‘atos puníveis’ da era Pinochet’) como que desaparece perto do fotão de 5 colunas de uma criança diante do hospital onde Arafat jazia em coma, na França. E é nada vezes nada comparado ao titulaço ‘Álcool sobe 14% e gasolina, 2,9%’, também em 5 colunas, abaixo daquela foto.

A Folha de S.Paulo deu o título maior e mais forte (‘Exército chileno admite crimes durante ditadura’) em duas colunas, abaixo da foto de Lula com a modelo Valéria Valenssa, na Portela, entre dois outros, sobre os negócios da empresa do vice José de Alencar com as Forças Armadas e os efeitos do estado crítico de Arafat na política palestina. Como se fosse editado nos Estados Unidos, o jornal preferiu dedicar a manchete ao preparo do ataque americano a Fallujah – uma escolha que este leitor considera um exemplo de miopia jornalística.

Dupla serventia

Desastrosa mesmo, porém, foi a primeira do Globo. Para começar, usou o canto superior direito da página para chamar um fait divers – ‘Piada leva brasileiros à prisão nos EUA’. Depois, reservou o título mais vigoroso para a economia (‘Indústria usa o otimismo para forçar alta de preços’). E só abaixo da dobra deu a confissão do general com a inacreditável gracinha ‘Enquanto isso, no Chile…’ pois o título se seguia à chamada ‘Notas complicam o general Albuquerque’ – que, esta sim, merecia ser manchete ou ocupar o espaço do título sobre a alta dos preços.

Dentro, na abertura da seção ‘O Mundo’ o jornal tratou o assunto como devia, já no título irrepreensível ‘Mea-culpa histórico no Chile’, ocupando toda a largura da página.

O mesmo fizeram Estadão (‘Exército chileno assume autoria de ‘atos puníveis e inaceitáveis’’) e Folha (‘Exército chileno admite crimes na ditadura’).

Centenas de milhares de brasileiros lêem pelo menos um desses três grandes. Muitos mais apenas correm os olhos pelas manchetes e chamadas das suas primeiras páginas (conforme os exibem as bancas). Os seus editores deviam servir a uns e a outros.

[Texto fechado às 17h30 de 7 de novembro]