Paulo Moreira Leite ‘Embalado pela vitória, PT ensaia `terceiro turno´ contra a imprensa’, copyright O Estado de S.Paulo, 5/11/2006
A festa da reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se um terceiro turno contra a mídia. Dizia uma faixa na Avenida Paulista, domingo à noite, durante o comício da vitória: ‘O povo venceu a mídia.’
No dia seguinte, na volta de Lula a Brasília, duas centenas de petistas empurraram e xingaram jornalistas. Um repórter da Folha de S. Paulo levou uma bandeirada. Um automóvel da TV Globo acabou coberto por adesivos da campanha de Lula. Temendo novas agressões, funcionários da área técnica da emissora trancaram-se no carro de link – para tentar abrir a porta, uma repórter teve de esmurrá-la.
‘Acho que a imprensa deveria fazer uma auto-reflexão sobre o que ocorreu nestas eleições’, declarou Marco Aurélio Garcia, presidente interino do PT, coordenador da campanha de Lula e assessor influente do presidente, assumindo a visão de que jornais e jornalistas têm ao menos parte da culpa pela baderna de que foram vítimas.
Garcia condena manifestações desse tipo. ‘Sou contra toda manifestação que conduza à violência’, ressalta. Os militantes que proferiram ameaças contra jornalistas usavam crachás de ministérios e muitos são figuras carimbadas de atos públicos de Brasília. Se houvesse interesse, não seria difícil localizá-los para explicar por que não se deve promover ‘manifestações que conduzam à violência’.
Um dos mistérios do segundo mandato será descobrir como o governo Lula pretende conviver com a mídia. Não adianta procurar pistas no programa de governo, que não recebeu leitura atenciosa nem dos signatários. O presidente já disse que pretende dar mais entrevistas – o que é sempre uma boa notícia, desde que concorde em ser cobrado por fatos desagradáveis. Nas entrevistas que deu no segundo turno, quando a necessidade de conquistar o eleitorado recomendava muita simpatia, Lula chegou a se dirigir em tom impróprio diante de perguntas sobre a ‘carga tributária’ e sobre a ‘reforma da Previdência.’
Imprensa burguesa
A realidade é que no Planalto ‘ainda tem muita gente que acredita em imprensa burguesa’, admite, em conversas reservadas, Tarso Genro, ministro das Relações Institucionais. Não se trata de uma herança retórica, mas de uma visão da mídia como adversária a ser pressionada e confrontada.
Uma repórter dedicada à cobertura do Palácio do Planalto desde a Nova República de José Sarney resume: ‘Cobri cinco presidentes diferentes, mas nunca vi relações tão tensas entre o governo e os jornalistas.’ Mesmo funcionários de carreira do palácio têm receio de conversar com os jornalistas, pelo temor de serem acusados de fornecer informações sem autorização. No Planalto também existem os funcionários-militantes, que formam um mundo exclusivo – no aniversário de Lula, tiveram um encontro fechado com o presidente.
A liberdade de circulação de repórteres enfrenta restrições crescentes desde o governo Collor. Mas eles contam que nunca foram tão vigiados como agora.
Promessa
As cenas dos últimos dias só foram surpreendentes porque se falou em melhorias antes da eleição. Muito antes do mensalão, o presidente teve um encontro com líderes sem-terra, em Brasília, quando centenas de militantes se aproximaram dos repórteres em tom de ameaça. Para evitar agressões, os jornalistas foram resgatados por José Genoino, então presidente do PT, e por José Dirceu, ministro-chefe da Casa Civil, e conduzidos a um local reservado às autoridades.
Garcia diz que ‘gostaria de viver num país com imprensa mais plural, onde, como na Espanha, eu pudesse ler El País e o ABC.’ Ele também diz que os ‘donos dos meios de comunicação nunca concordaram com as idéias do partido’. E frisa: ‘Mas agora os próprios jornalistas também manifestam uma posição de conflito conosco. Mudaram de campo cultural.’ Os adversários sempre acusaram a imprensa de dar um tratamento VIP ao PT, dispensando à legenda de Lula um olhar menos agressivo e inquiridor.
A crítica faz algum sentido, quando se conta a história do PT de trás para frente. Num fenômeno que tem a ver com política e até com antropologia – pois eram pessoas de uma mesma geração, muitas vezes colegas de escola e de ambientes culturais – o PT contava com uma credibilidade nas redações como nenhuma outra legenda da Nova República. Isso poupou o partido por um longo período. Como Lula descobriu no primeiro mandato, esse momento acabou – e o convívio com a imprensa será, em primeiro lugar, um convívio com sua liberdade.
P.M.L.
‘PF recua após ação criticada por ANJ’, copyright O Estado de S.Paulo, 5/11/2006
Os ataques de militantes do PT à imprensa depois da vitória se alimentam de levantamentos sobre o tratamento da mídia aos candidatos, que dividem as notícias em ‘positivas’, ‘neutras’ e ‘negativas’.
Um desses estudos, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), aponta que Lula teve uma pequena margem de notícias positivas ao longo do ano e sempre esteve na frente de Geraldo Alckmin entre as negativas. Alessandra Aldé, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e uma das coordenadoras do levantamento, acredita que a desigualdade na cobertura foi grande, ‘ajudando a criar o sentimento, nos eleitores do Lula, de que a mídia estava contra seu candidato’.
A professora dá um exemplo: ‘As notícias negativas de Alckmin foram raras. Era como se ele estivesse indo muito bem, sempre. Mesmo quando estava claro que havia perdido a eleição só se liam notícias positivas. A respeito de Lula, pelo contrário, nunca se liam notícias positivas’.
Os valores ‘positivo’ e ‘negativo’ não têm origem no jornalismo, mas na publicidade. Ao importar recursos de um mundo para outro, estes levamentos dão a impressão de que é possível transformar realidades políticas em dados matemáticos e daí extrair uma verdade. A idéia de que se pode produzir uma tabela comparando números positivos e negativos tem como pressuposto uma visão irrealista de equilíbrio entre candidatos – o que só seria possível se fossem personalidades idênticas, com virtudes e defeitos intercambiáveis.
Na reta final do primeiro turno, as notícias ‘negativas’ sobre Lula chegaram a 60% segundo os levantamentos quantitativos – e nem poderia ser diferente. Naquele momento havia surgido a denúncia do dossiê Vedoin, o candidato não foi ao debate da Rede Globo e a hipótese de segundo turno apareceu no horizonte.
Parte das dificuldades do PT em conviver com a liberdade de imprensa aparecem no terreno prático. A pretexto de investigar uma operação para esconder a participação do amigo presidencial Freud Godoy na compra do dossiê Vedoin, a Polícia Federal tomou o depoimento de quatro jornalistas da revista Veja, autores de uma reportagem sobre o assunto. Por quê? Segundo a PF, porque se pretendia apurar as denúncias, num inquérito sigiloso.
‘Os jornalistas não têm nenhum tipo de imunidade que os livre de serem ouvidos nos inquéritos policiais’, explica o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, especialista em liberdade de imprensa. ‘Nessas convocações só vislumbro dois objetivos para seus depoimentos: tentar averiguar como os jornalistas obtiveram as informações publicadas ou intimidá-los para obstar novas reportagens no futuro.’ Na sexta-feira, a Polícia Federal cancelou o depoimento de Marcio Aith, editor-executivo da revista, decisão que é vista como um gesto apaziguador.
Na semana anterior à eleição, um repórter da revista foi ouvido em Brasília. Na semana passada, outros três jornalistas prestaram depoimento, numa situação tensa. A maioria das perguntas girava em torno de um assunto único: convencer, sem sucesso, os jornalistas a apontar as fontes da reportagem – num sinal de que a investigação não se destina a apurar uma operação irregular, mas punir quem vazou uma notícia.
Os repórteres foram impedidos de consultar a advogada que os acompanhava. Também não puderam levar uma cópia de suas declarações. Durante a redação de um dos depoimentos, o delegado tentou atribuir a uma repórter a declaração de que a reportagem era uma ‘falácia’, mas foi impedido pela procuradora Elizabeth Kobayashi.
A temperatura dos depoimentos levou a procuradora a divulgar uma nota. Embora o PT tenha divulgado a versão de que a procuradora desmentiu as denúncias dos jornalistas, ela fala de ‘irregularidades’ e ‘imperfeições’ que só mais tarde foram corrigidas.
‘É lamentável que uma instituição como a PF se preste ao papel dehostilizar jornalistas. A liberdade de imprensa é um valor maior da democracia’, diz uma nota assinada pela Associação Nacional de Jornais.
Mino Carta
‘A opinião pública derrota a mídia’, copyright CartaCapital nº 418, de 8/11/ 2006
A liberdade de imprensa no Brasil é a das grandes empresas midiáticas deitarem e rolarem no esforço concentrado de servir o poder, ou, por outra, a si próprias. Assistimos neste momento ao lamentável espetáculo encenado pela mídia, ainda e sempre disposta a esconder o seu ódio de classe, o seu facciosismo, o seu golpismo, por trás do biombo da neutralidade.
Tenho a forte impressão de que o biombo está a ficar transparente. A eleição de Lula é a derrota da mídia. Patético é o esforço de insistir na idéia da eqüidistância e da isenção, como faz, por exemplo, o diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel. Diz ele que tal é a tradição global. Os porta-vozes de outras empresas de comunicação diriam o mesmo, impavidamente.
A tradição, de verdade, é aposta àquela pretendida, ainda que o tom da mídia, em 2002, tenha seguido pauta diferente daquele de 2006. Quando, há quatro anos, a eleição de Lula se desenhou como inevitável, o comportamento foi muito mais cauteloso, comedido, brando, do que desta vez. Pelo contrário, há um ano e meio, a mídia postou suas baterias e abriu fogo sobre Lula, o governo e o PT. Corrente para frente. E lá pelas tantas, concluído o primeiro turno, iludiu-se que a vitória de Alckmin seria possível.
Antes de chegar à encruzilhada da minha vida profissional, há quase 31 anos, para ser obrigado a partir de então a inventar meus empregos, tive patrões e sei que os homens se detestam. Não excluo exceções, mas, em geral, no plano pessoal e empresarial, um não tem o menor apreço pelo outro. Unem-se, porém, compacta e indissoluvelmente, sempre que divisam o risco comum.
Exemplos clássicos, que envolvem todos, e para não remontar aos sumérios, comecemos pela renúncia de Jânio Quadros e pela posse na Presidência do vice João Goulart. Ali começou a fermentar a idéia do golpe, já aflorada durante o governo constitucional de Getulio Vargas, e, logo após, o de Juscelino Kubitschek. A mídia implorou pela intervenção dos gendarmes, e ao se dar, enfim, a avançada grotesca dos tanques, saudaram-na como revolução, a redentora.
Depois da escravidão, o golpe de 1964 é a maior tragédia brasileira consolidada, digamos, pelo golpe dentro do golpe em dezembro de 1968. A ele os senhores da mídia não regatearam apoio em uníssono. Hoje alguns, com a extraordinária desfaçatez que os caracteriza, falam em anos de chumbo. Não para a maioria. Folha, Globo e Jornal do Brasil nunca foram censurados. O Estado foi, teve, porém, a regalia de preencher os cortes censoriais com versos de Camões. E assim, vale acentuar que uma briga entre golpistas convocou as tesouras, a mesma disputa capaz de condenar Carlos Lacerda à cassação.
A UDN de São Paulo queria mais poder do que o concedido pela ditadura. Mais esperto, Roberto Marinho entendia-se às mil maravilhas com o ministro Armando Falcão. Unidos, novamente, os donos da mídia, na oposição à campanha das Diretas Já, com a única exceção da Folha de S.Paulo. A equipe da Globo foi escorraçada pelos manifestantes durante o comício da Praça da Sé, dia 25 de janeiro de 1984.
E unidos a favor da candidatura Collor, o fio desencapado da vez, necessário, entretanto, para evitar Lula, em 1989. E unidos no apoio deslumbrado a Fernando Henrique Cardoso, para o primeiro e para o segundo mandato, aquele que resultou no maior engodo eleitoral da história da incipiente democracia brasileira. Foi quando Roberto Marinho confiou nos artigos de Miriam Leitão, a qual garantia que o real não seria desvalorizado.
Entre muitos lances da cobertura da campanha eleitoral neste ano, chamou-me atenção o espaço dado ao ex-presidente FHC na sua bem-sucedida exumação de Carlos Lacerda. Sem qualquer gênero de maravilha, ou surpresa, ou mesmo espanto, observo a atuação de inúmeros jornalistas que se prestam a fazer o jogo do patrão. Mas não é que o chamam de colega?
Leia, nesta edição, o artigo de Marcos Coimbra sobre a vitória da opinião pública contra a mídia que, como de hábito, tentou manipulá-la, desta feita em vão. De minha parte, apresso-me a homenagear os colegas que se recusaram a assinar o documento encaminhado às redações da Globo em todo o País pela chefe de produção do Jornal Nacional, Mônica Maria Barbosa. Não foram poucos, e alguns que subscreveram de imediato o texto que lhes apresentava o redator-chefe, acabaram por retirar suas assinaturas. Ora viva, nem todos são sabujos.
Clóvis Rossi
‘O espelho e a indigência mental’, copyright Folha de S.Paulo, 5/11/2006
Três companheiros, dos melhores que há na praça, queixaram-se em suas colunas do patrulhamento petista à mídia. São Dora Kramer (‘Estadão’), Eliane Cantanhêde, minha vizinha, e Merval Pereira (‘O Globo’).
Calma, gente, esse jogo é velho e é também emblemático do nível de indigência com que se trava boa parte do debate público. Lembram-se do período militar?
Qualquer crítico era logo rotulado de ‘comunista’. Pronto, bastava para fugir à discussão sobre, por exemplo, se havia ou não violação aos direitos humanos (e havia). Fugia-se pelo caminho de atribuir o fato a uma propaganda do então ubíquo ‘comunismo internacional’ (hoje, ubíqua é a ‘elite’, mas a indigência é a mesma).
Na democracia, quem criticava o governo tucano era ‘petista’, quem critica o lulo-petismo é ‘tucano’. Nada mais fácil para esconder-se dos fatos do que embaçar o espelho que os mostra. O diabo é que os fatos continuam a existir, do que dá prova a freqüência com que o próprio presidente se diz vítima de seus amigos mais próximos.
No lulo-petismo, a coisa piorou, compreensivelmente. Para quem passou a vida toda patrulhando o mundo, como se fossem os únicos puros e justos, é impossível aceitar ser patrulhado -e, pior, patrulhado pela Polícia Federal, pelo Ministério Público, pela Justiça.
Como é que esse pessoal (e a mídia) ousa criticar ‘são’ Lula e seus apóstolos? Aceitar a crítica é aceitar que foram enganados, algo impensável para portadores de indigência mental.
É muito mais fácil culpar o espelho. Ou dizer que, no governo anterior, o espelho não mostrava os fatos. Falso de novo. Como os lulo-petistas (e todos os outros) ficaram sabendo da compra de votos para a reeleição? Investigação própria?
Nada. Por esta Folha. Ponto. O resto é indigência mental. Não perco um segundo de sono com ela.
Marcelo Beraba
‘O debate necessário’, copyright Folha de S.Paulo, 5/11/2006
O fim da eleição presidencial no domingo passado não foi suficiente para fazer baixar o tom das críticas do PT, de membros do governo federal e dos partidos (vencedores e derrotados) à imprensa. As queixas e acusações contra os meios viraram rotina desde o ano passado, quando a Folha publicou as denúncias de corrupção feitas pelo ex-deputado federal Roberto Jefferson contra o governo federal e sua base aliada no Congresso.
Ao longo da semana passada, a situação ficou mais tensa com as agressões sofridas por jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada, as críticas desferidas por membros qualificados do governo federal e pelo governador reeleito do Paraná, Roberto Requião, e os interrogatórios dos jornalistas da revista ‘Veja’ pela Polícia Federal no inquérito em que foram chamados como testemunhas, mas se sentiram interrogados como réus. Esses fatos provocaram forte reação editorial dos meios.
A minha impressão é de que esta foi a campanha em que a imprensa foi mais duramente questionada. Certamente a internet teve um peso importante porque criou, e não pára de expandir, o novo espaço de circulação e enfrentamento de idéias sobre o papel da mídia e sobre a cobertura específica desta eleição. É um debate que os meios tradicionais têm dificuldades de acolher.
Identifico três aspectos nas críticas agora direcionadas à imprensa. Primeiro, há o questionamento em relação à qualidade das coberturas, o que abrange a precisão das informações, o equilíbrio editorial, os enfoques e os vieses.
Embora uma parte das críticas esteja contaminada pelo ressentimento e outro tanto faça parte da tentativa de intimidar os meios, não tenho dúvida de que foi uma cobertura falha. Houve erros factuais graves e em vários momentos ficou patente, pelos exageros e pela insistência em picuinhas e irrelevâncias, a má vontade com Lula e o seu governo.
Mas os meios fizeram o que tinham de fazer ao divulgar ininterruptamente e com visibilidade as dezenas de denúncias de corrupção, irregularidades e tramas ‘alopradas’. Devem ser criticados, neste capítulo, por não terem ido mais fundo por conta própria, perpetuando a dependência das CPIs (e, portanto, do jogo eleitoral), da Polícia Federal e do Ministério Público.
E devem ser criticados pelo que deixaram de fazer. As administrações tucanas no Estado e na cidade de São Paulo, por exemplo, foram mal cobertas. Evidência desse desinteresse, no caso da Folha, é que a informação sobre o déficit financeiro do Estado só apareceu no finalzinho do primeiro turno e por esforço da colunista Mônica Bergamo -fora, portanto, da cobertura rotineira do jornal.
E os leitores ainda esperam um balanço da política de segurança pública no Estado nos últimos 12 anos para que possam entender como foram possíveis as seguidas explosões de ataques do PCC que paralisaram São Paulo e cidades do interior. Essas falhas podem ser estendidas para outras áreas da administração pública cobertas esporadicamente e sem profundidade.
As críticas relativas à qualidade e ao enfoque das coberturas fizeram aflorar dois outros questionamentos legítimos, mas nem sempre bem direcionados. Primeiro, o papel da imprensa numa sociedade em desenvolvimento e numa democracia em construção. Junto, a discussão sobre a democratização dos meios de comunicação, aí entendidas principalmente a política de concessão de rádios e TVs e a altíssima concentração de audiências e do bolo publicitário, que sustentam o modelo de comunicação construído a partir da década de 1960.
Em relação ao papel da imprensa, um parêntese: há um grave problema quando um intelectual como Marco Aurélio Garcia, chefe da campanha vitoriosa da reeleição e presidente em exercício do PT, assim reage aos repórteres que querem informações sobre o futuro do partido: ‘Cuidem de suas Redações que nós cuidamos do PT’. Engano: interessa à sociedade brasileira e, portanto, à imprensa o que acontece no PT e como será formado o novo ministério.
A discussão sobre o papel da imprensa e sobre a democratização dos meios está contida, mas não será assim por muito tempo. Antes restrita a setores das universidades e a líderes de movimentos sociais, a discussão explodiu, nesta eleição, na internet. A imprensa tradicional erra ao não dar espaço para o debate esclarecedor das idéias e propostas em jogo (mesmo as que considera equivocadas) e a só se manifestar quando se sente agredida. O longo silêncio que se concede faz parecerem histéricos, desproporcionais ou meramente corporativos os gritos que emite quando lhe pisam os pés.
CartaCapital
‘Liberdade de imprensa? Indignação, quando convém’, copyright CartaCapital nº 418, de 8/11/ 2006
Diferenças na repercussão da suposta intimidação aos repórteres de Veja e da condenação de Emir Sader.
Há várias formas de impedir avanços democráticos em uma sociedade. Um deles, talvez o mais eficiente do ponto de vista de quem defende determinados privilégios, é bloquear a discussão sobre certos temas. No Brasil, os donos da mídia decretaram ser proibido debater seus erros e excessos, desnudar seus interesses ou apresentar, sobre o papel dos meios de comunicação, uma visão diferente.
A respeito, vale citar declaração recente do deputado federal Ciro Gomes, eleito com mais de 600 mil votos no Ceará e um dos políticos mais demonizados pela imprensa justamente por ter idéias próprias. Em entrevista ao blog Conversa Afiada, do jornalista Paulo Henrique Amorim, sediado no portal iG, Ciro refletiu: ‘Precisamos ter clareza de que não temos de ter medo de avançar em uma questão substantiva, que é a questão da democratização dos meios de comunicação. Quando a gente discute esse tema, os que têm o monopólio da mídia vão sempre inventar que isso é autoritário. Não é’.
Dois casos exemplares da última semana mostram como levantar a bandeira da liberdade de imprensa é uma questão de conveniência dos veículos de comunicação.
A suposta intimidação de três repórteres da Veja, convidados a depor na Polícia Federal por causa de uma reportagem, produzida pela própria revista, que revelava um hipotético encontro às escondidas entre Freud Godoy e Gedimar Passos, mereceu editoriais indignados e alentados textos nos principais jornais e emissoras de tevê. Instituições de classe e a sempre atenta OAB lançaram notas a repudiar a ‘truculência’ da PF e a exaltar a liberdade de imprensa. Como de costume.
Sutileza não faz parte da personalidade de policiais. Não há aqui defesa de ilegalidades por parte do aparelho de Estado. Nem se descarta a possibilidade de o delegado que ouviu os jornalistas ter cometido excessos injustificáveis contra cidadãos, qualquer que seja a profissão ou posição social, durante o depoimento.
Mas a situação está no seguinte pé. Em nota oficial, a direção da revista diz que seus profissionais foram intimidados. Também em nota, a Superintendência da PF em São Paulo nega. Em uma terceira correspondência, a procuradora Elizabeth Mitiko Kobayashi, escalada para acompanhar os depoimentos por ser representante de um órgão independente, afirmou que, no seu entendimento pessoal, não houve ‘qualquer ato de intimidação por parte da PF, o que teria provocado imediata reação de minha parte’.
A repercussão do episódio relativiza, porém, as versões fornecidas pelas partes. Enquanto editoriais e textos tratam as acusações de Veja como expressão da verdade absoluta, as negativas da PF e da procuradora são colocadas no condicional, desde sempre tratadas com salutar espírito crítico e distanciamento. Pergunta: Por que não proceder da mesma maneira em relação às declarações da revista? Por ora, interpretemos a reação em cadeia ao que teria sido um ‘ataque à liberdade de imprensa’ na conta do viés corporativista tão recorrente. Corporativista, diga-se, quando, de certa forma, está em jogo a credibilidade das empresas de mídia.
A mesma solidariedade ou indignação não se nota, por exemplo, no caso da condenação do sociólogo Emir Sader, em processo movido pelo senador pefelista Jorge Bornhausen. Sader, em artigos na imprensa, havia chamado Bornhausen de ‘racista’ por causa da famosa declaração do senador em que ele anunciava ‘o fim dessa raça’, ao se referir ao PT e a esquerdistas em geral.
O juiz auxiliar da 22ª Vara Criminal de São Paulo, Rodrigo César Muller Valente, condenou Sader a um ano de detenção, em regime aberto, e à perda do cargo de professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Cabe recurso.
Inaudita a decisão de Muller, pela tipificação do suposto crime, injúria, que teria sido cometido por Sader. Além do mais, é difícil negar que a frase do senador tenha sido racista, apesar de suas justificativas posteriores. Raras, porém, foram as manifestações de indignação diante do claro excesso do magistrado e da pena desproporcional. Em geral, deram-se em sites e blogs na internet. Nem uma linha em editoriais dos maiores jornais. Não houve sequer um colunista que tenha se comovido. Estes sempre vigilantes quando se trata não de defender um princípio, mas uma companhia. Ou um grupo delas.
Dora Kramer
‘Pesos e medidas’, , copyright O Estado de S.Paulo, 5/11/2006
São muitas as reclamações sobre o tratamento dado pela imprensa à condenação do sociólogo Emir Sader por injúria contra o senador Jorge Bornhausen, a quem chamou em artigo de ‘fascista’, ‘repulsivo’, ‘ladrão’, ‘explorador e assassino de trabalhadores’, em reação à frase do senador sobre o desejo de se ver ‘livre dessa raça pelos próximos 30 anos’, referindo-se ao PT.
Argumentam que a mesma liberdade de manifestação invocada para criticar o governo deveria ser alegada agora para censurar a sentença do juiz Rodrigo César Valente contra Sader.
As queixas não procedem, pois são questões totalmente diferentes. Uma coisa é a liberdade de se dizer o que se quer. A outra é a eventual ofensa cometida e o conseqüente recurso do ofendido à Justiça.
Não se contesta – ao menos aqui neste espaço – o direito de ninguém, seja político ou não, de ir aos tribunais em busca de reparação se achar os escritos ofensivos.
O que se condena em determinadas pessoas é a nítida intenção de criminalizar o exercício da crítica, da opinião, da interpretação e por vezes da mera reprodução de atos e fatos. Estes querem, da imprensa, concordância e consideram qualquer coisa diferente de aplauso, crime.
No caso de Jorge Bornhausen contra Emir Sader, aquele se sentiu ofendido por este e foi ‘buscar’ seus direitos, assim como o condenado em primeira instância pode recorrer judicialmente. Assim é a vida, assim é a democracia. Simples, muito simples.