Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tentativa de golpe. Guerra à vista

Nova guerra suja foi deflagrada no futebol brasileiro. Após receber uma tunda do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e ter de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), a Rede Globo perdeu seus privilégios monopólicos para adquirir os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro nos anos de 2012, 13 e 14.

Dessa forma, a concorrência prevista para o dia 11 de março passou a ter contornos muito mais interessantes, especialmente para os clubes, que finalmente viram uma claríssima brecha para elevarem exponencialmente seus ganhos com as milionárias transmissões televisivas. Isso porque antes a Globo tinha direito de preferência na renovação dos contratos, inclusive com acesso às propostas rivais, o que a fez tomar de vez as rédeas como sócia-proprietária do futebol nacional, em parceria com o todo poderoso Ricardo Teixeira, dono da CBF.

De agora em diante, por conta da determinação do Cade, a emissora terá de fazer aquilo a que historicamente não está acostumada: jogar dentro de regras limpas. Obviamente, a medida acendeu as esperanças de outros canais de TV, sempre excluídos, na prática, das negociações. Record, e seu temido saco sem fundo de dinheiro, e Rede TV já declararam intenções de participar. Fora a Band, que já transmite, mas pode se livrar do jugo global, que lhe impõe o que pode ou não exibir. Na TV fechada, ESPN, Bandsports e Telefonica tentarão fazer frente à SporTV – de propriedade da Globo.

Quem der mais, leva

E neste ano há a grande novidade de se vender os direitos de cada mídia separadamente, quando antes todas eram vendidas no mesmo pacote. Agora, TV aberta, fechada, pay per view, celular, internet e direitos internacionais serão negociados separadamente. O lance inicial para a TV aberta é 500 milhões de reais por ano (cifra do atual contrato), sendo que o Clube dos 13 calcula um rendimento total de 4 bilhões de reais ao final do período, na soma de todas as categorias.

A Globo já provou do veneno da emissora de Edir Macedo: perdeu os direitos de Londres 2012, pois neste caso não havia conchavo suficiente para que a Vênus Platinada levasse a parada por inércia. Quem deu mais levou, e pronto. No Brasil, não foi sempre assim que funcionou, devido à enorme subserviência de nossos dirigentes, sempre endividados, além de acomodados e aliados ao poderio global, que já fez diversos favores financeiros para apagar incêndios das agremiações.

No entanto, após anos de cobrança, o Clube dos 13, que reúne os 20 times mais influentes do país e juridicamente tem a prerrogativa de negociar o contrato de TV, após a providencial prensa do Cade decidiu adentrar o século 21 e elaborar uma licitação de verdade – simplesmente dentro das teorias do jogo capitalista. Ou seja: concorrência livre e aberta, quem der mais leva. Afinal, nossos clubes podem ser submissos e corruptos, mas precisam se resolver financeiramente.

De mãos dadas desde sempre

Vale lembrar que a Copa do Mundo tem produzido diversas disputas de bastidores no país, com times, estados e dirigentes se digladiando pelo melhor botim possível dos grandes eventos. Um dos casos notórios envolve o choque entre a CBF e o São Paulo FC, que objetivava ter seu Morumbi como sede da Copa, mas acabou passado pra trás por conta de antigas (e atuais) divergências com o imperador Ricardo Teixeira.

Assim, e amparada pela avidez por negociatas dos executivos da Fifa, a confederação inventou que o Morumbi não teria condições de sediar jogos do Mundial sem uma reforma que, segundo cálculos da citada camarilha, beiraria os 600 milhões de reais. O tricolor retrucou com um plano de um terço dos custos. Foi limado.

Com o senso de oportunismo em dia, o presidente do Corinthians (que se revela um sujeito congenitamente amoral), Andrés Sanchez, articulou com o ex-presidente-torcedor-do-Timão Lula, a Odebrecht e os governos estadual e municipal a construção de um estádio em Itaquera, sonho da agremiação, mas que neste caso viria com o bônus de também sediar a Copa. Uma belíssima jogada, convenhamos. Além disso, Sanchez se tornou aliado e fiel escudeiro de Ricardo Teixeira nos últimos tempos. Como prêmio, foi nomeado chefe da delegação da seleção brasileira na Copa de 2010. E sobre Globo e Teixeira nem é preciso falar: estão de mãos dadas desde sempre, com a emissora carioca tendo pista livre para cometer todos os desmandos que sempre se permitiu, como os detestáveis jogos às 10 da noite.

Tarefa delegada

E, exatamente quando a concorrência se abriu, passaram a surgir notícias dando conta de uma suposta queda de valor de mercado do futebol, cujas audiências estariam decaindo, o que não justificaria contratos mais polpudos. Tudo tenderia a piorar caso a Record ficasse com os direitos de transmissão e recuasse o horário das partidas, pois neste caso o futebol seria inapelavelmente derrotado pelo Jornal Nacional e a novela.

Só faltou alguma prova para respaldar a descarada chantagem. Quer dizer, algumas bem fajutas foram mostradas – no caso, os índices de audiência dos jogos dos estaduais deste ano. Só ‘ignoram’ o fato de que a culpa é do descrédito, desorganização e decadência em que tais torneios se encontram. Mas o Brasileirão é outra história, muito diferente.

Com a experiência de Londres ainda viva na memória e o enquadro da autarquia do Ministério da Justiça, bateu o desespero na emissora, que iniciou um claríssimo processo de cooptação dos clubes. Diante da proximidade da decisão final, fatos estranhíssimos passaram a ocorrer em avalanche. O presidente do Corinthians, sempre ele, passou a se queixar de uma falta de democracia na condução das negociações por parte do Clube dos 13. O detalhe é que a comissão que cuida do assunto foi eleita pelo conjunto dos membros e, portanto, todos deram sua anuência a essa forma de elaboração do processo de venda dos direitos.

Acusado de não ter assumido seu papel de vanguarda no futebol, tal como se esperava em seu surgimento, o Clube dos 13 jamais fez aquilo a que se propôs ao surgir, isto é, organizar uma liga de clubes que gerenciasse o Campeonato Brasileiro, o que só ocorreu em 1987, ano de sua fundação, quando a CBF se declarou incapaz de realizá-lo, delegando a tarefa à entidade que nascia. E quando finalmente o C-13 resolve tomar uma postura mais protagonista e valorizar seu produto, o futebol, alguns de seus membros começam a sabotá-lo…

‘É caso de polícia’

Segundo Ataíde Gil Guerreiro, membro da entidade e um dos responsáveis pela condução da negociação, ‘a Globo está se sentindo em risco. Ela está num estado de conforto e não quer risco. Ela tem todas as condições de ganhar, mas para que correr risco? Ela não quer fazer a concorrência com a lisura que nós queremos’. Ele ainda acrescentou que Sanchez tem se portado como ‘advogado da Globo’, além de apontar, para não deixar dúvidas, que a emissora está querendo comprar os clubes e forçar a cisão na entidade, principalmente com os dois mais populares, Corinthians e Flamengo. Não à toa, a CBF resolveu reconhecer na mesma semana, após 24 anos, o título do Flamengo de 87, que sempre foi muito cristalino, mas que a oportunista entidade tinha tratado de furtar através de uma canetada da justiça comum.

Já Alexandre Kalil, presidente do Atlético-MG, foi ainda mais incisivo. ‘É uma baderna, tentaram avacalhar. Em princípio, o Clube dos 13 nasceu para isso (ser uma liga dos clubes), mas perdeu o trem da história. Nós temos que, primeiro, nos fortalecer como entidade de classe’, declarou à ESPN Brasil. Para em seguida arrematar: ‘O Corinthians podia perfeitamente assumir a liderança do processo, queremos mudar a história e o patamar do C-13. O Flamengo também poderia. A avacalhação, o tumulto de não querer sentar na mesa é que é revoltante.’

E claro que a balbúrdia é patrocinada pela Globo, que muito obviamente tem agido na ilegalidade e oferecido supostas vantagens, por fora, aos clubes, como, por exemplo, empréstimos e adiantamento de cotas. Além disso, ofereceu aquilo que o presidente do Corinthians alega desejar para aumentar seus ganhos: negociações individuais, algo cada vez menos aceito no mundo do esporte. Sanchez crê que negociando somente a parte alvinegra poderá ganhar mais ainda, já que preside o time mais forte do país em termos de mercado.

Por sua vez, após ‘reaver’ o título de 87, o Flamengo resolveu aderir à dissidência, sendo seguido por Vasco, Botafogo e Fluminense, temerosos de se oporem a um rival mais poderoso que os três juntos no mercado. Coritiba e Goiás também embarcaram e outros podem engrossar a debandada. Mas a atual liderança do C-13 resolveu bater o pé e comprar a briga de vez. ‘O Cade está sendo estuprado. Mais do que isso: o povo do futebol está sendo estuprado’, declarou Kalil. ‘Vamos raciocinar linearmente. Estamos aqui em um jogo de dinheiro’, completou, querendo dizer que não interessa quem transmitirá, e sim, quem pagará mais. Sem a vitória garantida e tendo de abrir a carteira, a Globo faz de tudo para melar o processo. ‘É caso de polícia, de Ministério Público’, completou o dirigente atleticano.

Regras da democracia capitalista

Porém, há um grande entrave para quem quiser deixar o C-13: dívidas, pois os clubes também devem uns bons milhões à entidade. ‘Quem quiser, pode sair. É só vir aqui, acertar as pendências e se desfiliar. Como qualquer um que pretende fechar uma conta corrente no banco’, jogou na cara Fabio Koff, o presidente, que ainda chamou Sanchez de ‘moleque e irresponsável’.

Diante do escárnio de Globo-CBF, repudiado pelo público, os revoltosos já amenizam o discurso, pois uma batalha judicial tem tudo para reservar a derrota ao bloco, além do inevitável desgaste com as próprias torcidas, que podem emparedar seus dirigentes e indagar por que dificultam uma concorrência que tende a propiciar um enorme aumento das receitas de TV. ‘Eu quero sair dos meus 13 milhões por ano para 40. Acho que os outros não são idiotas e também querem’, disparou Kalil.

Não seria a primeira vez que os clubes nacionais perderiam o ‘trem da história’, mas agora, quando todo o mundo burguês exalta a exuberância da economia brasileira e o país se aproxima dos mega(bilionários)eventos, uma nova capitulação a déspotas tão conhecidos e desgastados não será facilmente engolida. Dessa vez, parece que a Globo, adotada e turbinada por uma ditadura, terá de enfrentar as autênticas regras de uma democracia capitalista.

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Jornalista