Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Toscani e a revolução na publicidade

Ao longo das décadas de 1980 e 1990, o mundo assistiu e polemizou às lendárias campanhas de Oliviero Toscani para a Benetton. Um dos maiores fenômeno da comunicação publicitária no século 20, o trabalho do fotógrafo italiano foi imune à indiferença. Nos primórdios da década de 1990, a Aids ainda era uma enfermidade relativamente obscura, e suas vítimas, estigmatizadas. Nesse contexto, uma foto – publicada em 1992 – ganhou o mundo, por seu conteúdo impactante e polêmico. A imagem retratava David Kirby, portador do vírus em estado terminal e em um leito doméstico, ladeado pelos pais e por uma prima. O aspecto do enfermo era deprimente e prenunciava a brevidade de sua morte.

A cena, registrada por Therese Frare – com permissão do próprio David –, a despeito da carga de morbidez, acabou pinçada para integrar, ao lado de outras 11 imagens, a campanha “Choque de realidade”, promovida pela indústria de moda jovem Benetton. Apesar do mote pouco óbvio, a peça, com a foto de um doente em seus derradeiros suspiros, pode ser considerada o clímax de um dos maiores fenômenos da comunicação publicitária do século 20, fruto da estratégia ousada do fotógrafo italiano Oliviero Tosacani, que adotou cenários da vida real em detrimento de cenas posadas em estúdios.

Para além da imagem

Paralelamente à publicização da agonia de David Kirby, a Benetton valeu-se, ainda, de exitosas ações comunitárias que complementaram a campanha, como a confecção ou patrocínio de livretos sobre sexo seguro na Itália, nos Estados Unidos e no Brasil – onde a distribuição do material contemplou, inclusive, garotas de programa em favelas cariocas – dentre outros países.

Pouco antes, no desfecho dos anos 1980, a mesma Benetton já havia causado sensação ao lançar campanhas inspiradas na luta antirracista, onde as peças exibiam, cuidadosamente, um contraste entre as cores pretas e brancas. Aqui, imagens como a de um bebê branco sendo amamentado por uma mulher negra, chegaram a causar constrangimento perante o agente da empresa na África do Sul, à época mergulhada no obtuso regime do apartheid. O conceito da unidade racial rendeu o afamado slogan “todas as cores do mundo”, posteriormente repaginado para “United Colors of Benetton”.

Fundada em 1965 pelos irmãos Luciano, Giuliana, Gilberto e Carolo Benetton, a companhia italiana destacou-se por abandonar, em sua publicidade, a tradicional fórmula de apelo direto a persuasão para a compra, panaceia generalizada na comunicação mercadológica na ocasião. Em lugar disso, tornou tênue a divisa entre o comercial e a propaganda institucional. Graças às imagens chocantes, a campanha não encontrou problema em superar o obstáculo da percepção seletiva dos targets, além de gerar uma identificação progressista em escala mundial. A estratégia optada destinou-se à edificação da marca via comentários, discussões e polêmicas, tornadas pop graças à centelha precisa captada pela genialidade do experiente Oliviero Toscani.

Genialidade e condenações

Nascido em 1942, na cosmopolita Milão, Toscani trabalhou para importantes veículos, como as revistas Elle, Vogue for Man, GQ e Mademoiselle. Através da Benetton, chegou ao ápice da carreira, arrebatando grandes honrarias, como o prêmio Cartaz, o prêmio Unesco e o Leão de Ouro no festival de Cannes, em 1989.

Mas não foi com ausência de críticas que o fotógrafo construiu o seu portfólio. Segundo registra Celso Figueiredo Neto no livro Publicidade e Cia, de Malena Contrera e Osvaldo Hattori, o milanês foi vituperado em função do “uso indiscriminado de cenas trágicas e reais (…) com propósitos fúteis, como vender moda jovem”.

Em meados dos anos 1990, diante do cartaz Monumento a um soldado conhecido, os opositores do método pouco convencional de Toscani fizeram-se presentes de modo contundente. Na ocasião, o criativo da Benetton voltou-se para a sangrenta guerra estabelecida na ex-Iugoslávia, conflito permeado pela intolerância religiosa e nacionalista.

Disposto a notabilizar o penoso embate, então subjugado pela mídia mundial – que na ocasião preferiu destacar a crise conjugal entre o príncipe Charles e a princesa Diana –, Toscani fotografou as roupas que teriam sido utilizadas por um jovem combatente no momento de sua morte. O par de calças e a blusa teriam sido obtidos em fevereiro de 1994, após a proposição da ideia à Cruz Vermelha e autorização da família do jovem. No cartaz criado por Toscani, a calça e a camisa – ainda tingida pelo sangue do jovem e furada pela bala que o vitimara – foram dispostas de modo a indicar a posição do corpo tombado de um soldado. Soldado este que possuía identificação: Marinko Grago, nascido em 1963.

A peça publicitária, lançada em 110 países, foi recusada pelo Los Angeles Times, nos Estados Unidos, acusada pela Unicef e vista com desconfiança por entidades de direitos humanos na Alemanha. O Monumento a um soldado conhecido teve, ainda, sua veracidade posta em cheque pelas páginas do semanário alemão Die Woche, em reportagem de Klaus Lange, publicada no mesmo ano.

Em sua defesa, Toscani costumava retorquir revestindo seus métodos de um caráter humanitário, na medida em que – dizia ele – expunha aos jovens de todo o planeta problemas concretos do mundo contemporâneo. De fato, a estratégia comercialmente bem-sucedida da Benetton adornou metrópoles e ilustrou importantes mídias com temáticas de grande valor político-social, o que não torna demérita a validade reflexiva das críticas, especialmente no tocante à ética na publicidade.

Contudo, ao menos do ponto de vista epistemológico, Toscani trouxe para o palco da publicidade – em escala colossal – atores e cenários de um mundo complexo que não cessa de pulsar do lado externo das paredes dos estúdios e das agências de publicidade.

Pela força da propaganda

A linha de comunicação adotada pela Benetton fez uso de estratégias secundárias como forma de complementar o impacto causado pelas imagens chocantes apanhadas por Oliviero Tosacani. Em meio aos conflitos na ex-Iugoslávia, nos anos 1990, e por ocasião do lançamento da marcante campanha Monumento a um soldado conhecido, o próprio Toscani registrou carta destinada ao jornal Slobondenje, de Saravejo, explorando o potencial da linguagem do editorial jornalístico no compósito de uma campanha publicitária. Eis um trecho da carta:

“United Colors of Benetton dirige esta mensagem ao mundo pelo poder da publicidade. A United Colors não pretende dar respostas, mas questionar sobre os civis, crianças e os soldados mortos em Saravejo. Por trás de cada soldado há um homem com sua vida pessoal, e as pessoas que ele ama, a sua história. E atrás de cada vida rompida existe uma responsabilidade de um mundo que se limita a olhar (…)” (CALAZANS, Flávio. Benetton: o vírus da nova era. Santos, SP: M.S Okida, 1998).

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Tiago Eloy Zaidan é professor da Escola Superior de Marketing e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco