Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

TV Brasil, a encruzilhada anunciada

‘A TV que não pega’, um editorial da Folha de S. Paulo de sexta-feira 31/7), pleiteou o fechamento da TV Brasil:




‘O fato é que a TV Brasil já começou mal, através de uma medida provisória, em vez do encaminhamento por projeto de lei. Tem 15 `representantes da sociedade civil´ em seu conselho, todos nomeados pelo presidente Lula. Os vícios de origem e o retumbante fracasso de audiência recomendam que a TV seja fechada – antes que se desperdice mais dinheiro do contribuinte.’


Dois dias depois, O Estado de S. Paulo, também em editorial, reforçou as críticas da Folha:




‘Registre-se, também, que não são poucas – nem sem fundamento real – as acusações de essa instituição ter se transformado num formidável cabide de empregos. Assim, é de reconhecer que desde sua criação houve uma `evolução´ no tipo de crítica que se faz à TV Brasil: antes era o risco de ela tornar-se um instrumento de propaganda oficial – algo de todo incompatível com os melhores costumes das verdadeiras democracias. Hoje, a maior crítica é ao fato de essa `TV Pública´ ter se tornado nada mais do que um tremendo desperdício público!’


A base para os comentários veio na reportagem de Ana Paula Sousa, da Folha, que saiu com grande destaque na capa da Ilustrada do dia 30 de julho. Em letras propriamente garrafais, o título opinava: ‘Tela fria’. A TV Brasil foi lançada em 2007 com a promessa de ser a principal televisão pública do país. Por televisão pública, não custa sublinhar, sempre se entendeu uma televisão livre das influências governamentais e, de outro lado, livre também dos mecanismos de mercado, ou seja, ela não deve ter dependência política em relação aos governantes e também não deve ser dependente das receitas publicitárias, que respondem pelo financiamento das emissoras comerciais. E então? A TV Brasil cumpriu o prometido?


Como a reportagem de Ana Paula Sousa apontou, o grau de decepção é grande. Na opinião de vários que participaram da criação do canal, as coisas vão mal. Entre os que se desencantaram estão Mario Borgneth e Orlando Senna. Em 2007, eles deixaram postos no Ministério da Cultura para assumir cargos de direção da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), a estatal criada naquele ano para abrigar a TV Brasil, criada no mesmo momento. Ao longo do caminho, os dois se demitiram em função de divergências. Agora, engrossam as fileiras dos que não acreditam nas possibilidades da EBC e da TV Brasil. Com isso, a legitimidade do projeto minguou um pouco mais.


Na verdade, o déficit de legitimidade vem desde a origem da EBC, que resultou da fusão da antiga Radiobrás com a TVE do Rio de Janeiro. A empresa foi criada por Medida Provisória – ato do pelo qual o Poder Executivo legisla, ou seja, uma MP surte efeitos de lei mesmo antes de ser aprovada pelo Congresso Nacional. Graças a esse artifício, a EBC e a TV Brasil iniciaram suas atividades ainda no final de 2007, quando a MP foi enviada ao Congresso Nacional. A tramitação consumiu alguns meses, mas não trouxe maiores sobressaltos. Em março de 2008, estava aprovada no Senado, depois de ter passado pela Câmara.


Equívoco recorrente


Mas não é esse o ponto – a origem por Medida Provisória – que sofre mais restrição dos críticos. O que eles apontam de mais sério, com razão, é o fato de a EBC ser vinculada organicamente à Secretaria de Comunicação Social do Governo. Como essa secretaria pertence à Presidência da República e tem, entre suas atribuições, a responsabilidade de zelar pela boa imagem do próprio presidente, exercendo as funções de publicidade e propaganda governamental, além da assessoria de imprensa do Planalto, a possibilidade de conflitos de interesse é óbvia. A TV deveria ser crítica e independente, enquanto a Secom precisa defender a Presidência da República. A TV deveria olhar os acontecimentos e relatá-los sem ter lado nenhum, enquanto a Secom tem o dever de promover a versão da Presidência. As contradições falam por si.


Nesse sentido, Orlando Senna observa: ‘A TV é vinculada à secretaria que maneja a informação do governo. O ideal seria que não tivesse esse perfil estatal, que fosse, por exemplo, uma fundação. Em outros países, se ligadas ao governo, as TVs públicas tendem a estar ligadas aos ministérios da Cultura ou da Educação’.


Ele tem razão. Quando defende que o vínculo da TV Brasil com o Estado se dê por meio do Ministério da Cultura, Senna reafirma o que hoje é cristalino. No que se refere à idéia de uma fundação, ele também está certo, mas aí a questão já não é tão simples. Claro que, em princípio, a natureza de uma fundação se aproxima muito mais dos ideais da comunicação pública: ela é mais permeável à presença de representantes da sociedade civil, seu regime administrativo não se confunde com critérios governamentais e, nela, padrões de eficiência testados na gestão privada são também aplicáveis. O que não significa que uma fundação funcione como empresa comercial, nem de longe; numa boa fundação a fiscalização dos atos administrativos é intensa, profunda e constante, inibindo as manobras de esperteza.


O problema é que, atualmente, o assunto fundações é uma controvérsia inconclusa no âmbito da administração federal. Não se sabe direito como elas devem ser – e como elas devem se vincular à União. Em São Paulo, a TV Cultura é estruturada como uma fundação de direito privado e deu certo, ao menos como solução administrativa, mas é muito improvável que se consiga reproduzir o modelo paulista na administração federal. Os motivos dessa improbabilidade nos levariam a um exercício de exegese em Direito Administrativo, para o qual eu não estou qualificado. No mais, não precisamos de nenhuma exegese para entender o mal-estar instalado. De todo modo, o desenho dessa fundação ainda está por ser esboçado. A lição de casa não foi feita. Que o formato da EBC, uma estatal, é bastante semelhante, em quase tudo, à velha Radiobrás, nós todos já sabemos. Mas com que fundação substituí-la? A lição de casa não foi feita.


Outro aspecto que ninguém parece levar em conta é que, mesmo sendo uma estatal, a TV Brasil poderia apresentar padrões superiores de desempenho. Não é verdade que tudo o que é estatal possa ou deva ser, necessariamente, governamental. Antes o contrário. Uma emissora estatal – pertencente ao Estado – não é nem deveria ser sinônimo de emissora governamental. Por qualquer dos princípios constitucionais que analisemos a gestão de uma estatal, sempre chegaremos à conclusão de que ela não só não deve como não pode, de modo algum, ceder a critérios partidários, sejam eles favoráveis ou contrários ao governo da vez. O apartidarismo e a impessoalidade não apenas podem como devem pautar a conduta de qualquer organismo estatal, inclusive uma emissora. Erroneamente, costuma-se dizer que qualquer entidade estatal é sempre governista. Erroneamente. Dizer isso é admitir o patrimonialismo como um mal irremovível na comunicação pública. Se há algo que deveria dar exemplo de apartidarismo esse algo é justamente um órgão de Estado.


As circunstâncias da opinião


A experiência pessoal me autoriza a acreditar que, também na área da comunicação, é possível imprimir um perfil impessoal a órgãos estatais. Para que o leitor tenha mais clareza sobre a base do meu ponto de vista, lembro que presidi a Radiobrás entre janeiro de 2003 e abril de 2007. Exerci o cargo dentro do velho regime jurídico, herdado dos tempos da ditadura, e, nem por isso, os veículos da Radiobrás, como a Agência Brasil, entre outros, sucumbiram passivamente ao proselitismo governamental. Em muitas frentes de atuação da empresa, o vício da chapa branca foi vencido. Houve, é claro, inúmeros escorregões de chapabranquismo, que reconheço, mas, nesses quatro anos e quatro meses de serviço público, pude comprovar que o apartidarismo é possível numa estatal.


Mesmo assim, continuo afirmando que a empresa estatal não é o melhor ambiente para veículos de comunicação pública. Lembremos que esses veículos também fazem jornalismo – e jornalismo e Estado não se dão muito bem. Não obstante, foi por aí que a TV Brasil insistiu em prosseguir. Assim, escolheu a via traiçoeira de tentar fazer de uma estatal uma instituição sob controle da sociedade, não do governo, capaz de fazer jornalismo apartidário. Não se sabe se convenceu o governo dessa tese, mas certamente não conseguiu convencer a sociedade. Atenção para isso: não digo apenas que ela não convenceu os editorialistas da Folha e do Estado; digo que ela não convenceu, também, entidades da sociedade civil, como os ativistas do Intervozes, uma ONG bem atuante que acompanha de perto o que se passa com a TV Brasil. A propósito, uma das representantes do Intervozes, Bia Barbosa, aparece na reportagem da Folha com críticas severas aos descaminhos da EBC.


Mesmo assim, não dá para dizer que a EBC simplesmente fracassou. Em primeiro lugar porque, se compararmos seu conteúdo atual com o que tínhamos no Brasil até 2002, notaremos um claro aprimoramento. Houve progresso. Às vezes, vendo a programação da TV Brasil, identifico melhora em relação aos programas que a TV Nacional (o antigo canal aberto da Radiobrás, em Brasília) exibia durante a minha gestão. Nada posso dizer sobre a Agência Brasil e as emissoras de rádio, que não acompanho mais. Agora, sobre a TV, ainda que a veja pouco, certamente houve progresso.


Se é assim, qual a razão das críticas que se avolumam entre aqueles que antes aplaudiam a iniciativa da EBC? A resposta talvez passe pela constatação, ainda que tardia, de que, nesse caso, melhorar é pouco. Para a EBC, não basta ser melhor que a Radiobrás anterior a 2003. Não basta que sua televisão tenha superado o que tínhamos na TV Nacional até 2007. A expectativa, justa, era bem mais alta. Teríamos que ver na TV Brasil, hoje, uma qualidade indiscutível, ainda que as reações da audiência não se fizessem sentir. (A audiência reage lentamente, não nos esqueçamos.) Teríamos que ver um jornalismo muito mais crítico, mais independente do que aquele que se firmou entre 2003 e 2007. Teríamos que ver divergências abertas entre a EBC e representantes do governo, que seriam naturais. Bem, isso não aconteceu.


E por quê? Onde é que o erro aconteceu? De minha parte, não acredito que o ministro da Secom, Franklin Martins, tenha conduzido esse processo com a intenção de meramente aparelhar o equipamento público para promover autoridades. Tive contato com ele quando me afastei da presidência da Radiobrás e trago dessa breve convivência a convicção de que ele se orienta segundo altos parâmetros da ética republicana. Dito isso, a pergunta volta a ser: onde é que a TV Brasil e a EBC erraram?


Os erros e suas raízes


Do meu ponto de vista, o erro tem origem na subestimação dos efeitos políticos que o vínculo com a Secom traria para o projeto e para a imagem da televisão pública. Na época, essa vinculação parecia mais ‘natural’ em relação ao que havia antes. A transição parecia mais ‘fácil’ se conduzida nessa direção. Parecia mais ‘factível’. Migrar a velha estrutura da Radiobrás para o Ministério da Cultura seria uma operação muito mais trabalhosa, com todas aquelas equipes habituadas ao contato direto com o Palácio tendo que se habituar a um costume totalmente distinto. Ocorre que isso não era apenas um detalhe. Era um dado central. Vinculada ao Palácio do Planalto, a EBC nasceu gerando sérias desconfianças em setores democráticos. Aliás, desconfianças fundamentadas – e que se ampliam. As premissas lógicas de qualquer comunicação não-governamental não se coadunam com esse vínculo, ainda que ele seja descrito como um detalhe administrativo.


Não falo isso só agora, quando as evidências se escancaram. Alertei antes, em várias ocasiões. Em fevereiro de 2008, quando a Medida Provisória ainda tramitava no Senado, publiquei dois artigos sobre isso na página 2 de O Estado de S. Paulo, reproduzidos neste Observatório. No artigo do dia 14 de fevereiro de 2008, escrevi:




Há mais debilidades que acertos na MP, a começar por sua natureza de medida provisória, que não deixa muito espaço para a elaboração legislativa – um projeto de lei seria mais adequado. (…) A EBC tem o semblante – e a nomenclatura – de uma Radiobrás recauchutada. A velha estatal nasceu nos anos 70 com o nome de Empresa Brasileira de Comunicação. A estatal nova se chama Empresa Brasil de Comunicação e, em muitos aspectos, é isso mesmo: uma Radiobrás sem o sufixo ‘eira’.


A exposição de motivos assinada pelos ministros Franklin Martins, Dilma Rousseff e Paulo Bernardo fala em ‘preocupação presente de garantir a autonomia da nova empresa, por meio da criação de mecanismos institucionais protetores dos dois flancos que poderiam se constituir em ameaças: a subordinação às diretrizes do governo e o condicionamento às regras estritas de mercado’. Muito bem. Ocorre que tanto a MP como o Estatuto da EBC, apresentado pelo Decreto Presidencial nº 6.246, de 24/10/2007, não dão conseqüência àquela ‘preocupação’. Em relação à falta de independência do modelo antigo, o avanço é quase nulo. Basta ver como se compõe o ‘órgão de orientação e de direção superior da EBC’, o Conselho de Administração (ver artigos 14 e 15 do Estatuto e artigos 12 e 13 da MP). São cinco membros. O ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República indica dois deles. O terceiro é o diretor-presidente da empresa. Os outros dois vêm do Ministério do Planejamento e do Ministério das Comunicações. A esse conselho cabe eleger e destituir os diretores da EBC, à exceção de dois, o diretor-presidente e o diretor-geral, nomeados diretamente pelo presidente da República. Ora, pode haver estrutura mais passível de ‘subordinação às diretrizes do governo’? Pode haver algo de mais semelhante à antiga Radiobrás?




A novidade se resume à presença de outro conselho, o Curador, que tem um representante eleito pelos funcionários e ‘representantes da sociedade civil’ – designados, note o leitor, também pelo presidente da República. O Conselho Curador é vistoso, mas não manda. Embora esteja autorizado a, por maioria absoluta, imputar voto de desconfiança aos diretores, tem funções mais consultivas que deliberativas [ver íntegra aqui].


Duas semanas depois, no dia 28 de fevereiro de 2008, voltei à questão:




A prevalecer o que dispõe a MP, a EBC ficará vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, cujo ministro conservará a prerrogativa de indicar o presidente do Conselho de Administração, órgão superior de direção da estatal. Sejamos claros: esse vínculo institucional da EBC com a presidência da República vai na contramão dos melhores princípios da comunicação pública. Nos estados democráticos, emissoras públicas têm muito mais afinidade com a área da cultura do que com áreas encarregadas da agenda da presidência da República. Isso significa que devem ser tratadas como entidades culturais, não como postos avançados da comunicação de governo.




A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República não é um organismo com finalidades culturais. (…) Faz comunicação de governo, não comunicação pública. Nada tem a ver com cultura em sentido amplo – ou com a atividade jornalística em sentido estrito. Aliás, pelos cânones da ética jornalística, um organismo dedicado à assessoria de imprensa não deveria supervisionar uma empresa pública encarregada de informar com objetividade. Simples assim. Se se quer de fato uma EBC jornalística, não se pode querer uma EBC vinculada à Presidência da República [íntegra aqui].


Escrevi em vão. Agora, surge publicamente a proposta de fechamento da TV Brasil. Acho uma pena. De minha parte, não concordo com ela. A despeito dos erros de percurso, sou contra o fechamento. Se a EBC for extinta, sem deixar nada em seu lugar, o Brasil terá um prejuízo maior do que os 350 milhões de reais que a empresa consome por ano. A sociedade brasileira precisa de emissoras públicas. O papel que elas podem desempenhar, se bem posicionadas institucionalmente e bem administradas, é mais valioso do que esses milhões.


Não é só isso. Além da TV Brasil, estão dentro da EBC a Agência Brasil e a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, para ficarmos apenas em dois exemplos. A primeira já provou sua utilidade pela precisão das informações que leva ao cidadão e a diversos jornais e emissoras do país. A segunda é parte da história cultural do Brasil. É um patrimônio. Estava inteiramente sucateada e, em 2004, foi restaurada. Tem mais. Precisamos levar em conta que, na EBC, há profissionais de alto nível trabalhando há décadas com ótimo resultado. Não é razoável que eles se vejam penalizados, paralisados, desativados em função de avaliações ainda parciais.


O tema requer um exame desapaixonado, ainda que rigoroso. Ele indicará que a solução para a encruzilhada em que a EBC estacionou passa por uma reforma profunda, radical, não pelo fechamento sumário. Essa reforma deve incluir, entre outras medidas, a vigência de um plano de carreira sem brechas para o clientelismo ou o empreguismo, com regras públicas e impessoais para contratações, promoções e demissões. Deve contemplar também novas regras de gestão, que assegure independência editorial e administrativa. É preciso apressar a transferência de toda essa operação de comunicação pública para o âmbito do Ministério da Cultura e, ao mesmo tempo, elaborar um bom projeto de fundação que atenda a essas finalidades. Tudo isso, claro, com ampla participação da sociedade.


Sem essas providências imediatas, a sangria de credibilidade vai continuar e o que já está ruim vai piorar. Sem essas providências, cada vez mais gente vai começar a achar que o melhor é fechar tudo e parar com essa conversa de uma vez por todas.


 


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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP