MÍDIA & POLÍTICA
Governo versus Estado, 27/07/07
‘A enxurrada de manifestações das autoridades iniciada na terça-feira desenha uma estranha situação: o Estado brasileiro está sendo atacado pelo governo brasileiro. Absurdo? Mas verdadeiro. O quadro parece kafkiano, ilógico, mas é a realidade: somos profundamente kafkianos apesar das altas doses de tropicalismo e iberismo que circulam em nossas veias. A sombria Praga é aqui, em meio a tanta exuberância e claridade.
Uma semana depois da catástrofe da TAM, depois de dez meses de silêncio, omissões e dissimulação, o governo despertou. Ao reconhecer finalmente a existência de uma crise aérea, o presidente Lula desvenda com toda a clareza um conflito entre governo e Estado já que esta crise foi negada ao longo de 10 meses pelo conjunto de instituições que controlam, administram e protegem a nação.
Os pronunciamentos e ações ao longo do ‘apagão’ procuravam caracterizar aquele dramático desdobramento de fatos como episódico, circunstancial, sem conotação sistêmica. A revolta dos controladores de tráfego aéreo contra a precariedade das condições de trabalho e equipamentos foi apresentada de forma simplista como um foco pontual de indisciplina, capaz de ser revertido com a aplicação de castigos rigorosos.
O colapso do transporte aéreo a partir do Natal foi explicado formal e oficialmente como convergência de condições excepcionais, jamais como ameaça estrutural. Um Estado letárgico, inoperante, concentrado quase que exclusivamente na movimentação das forças políticas que o sustentam, não soube alarmar-se, precaver-se, nem assumir o seu papel como defensor dos interesses da sociedade.
Para o Estado brasileiro o ‘pessoal que anda de avião’ era uma elite, não merecia ações emergenciais de grande porte. A prova está no descaso do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) no tocante ao transporte aéreo e às alternativas ferroviárias capazes de desatar os pontos de estrangulamento (como a rota Rio-S.Paulo). Agora, o governo declara com todas as letras que o Estado não sabe planejar o crescimento e retira da algibeira o projeto mágico do terceiro aeroporto para o estado de S. Paulo.
Tanto o discurso melancólico do ex-ministro Waldir Pires como as palavras enérgicas do novo titular da Defesa, Nelson Jobim, confirmam a inépcia do Estado na administração de uma crise que se anunciava de forma inequívoca e clara.
As sucessivas declarações do brigadeiro Jorge Kersul Filho, diretor do Cenipa (Centro Nacional de Investigações e Prevenção de Acidentes) subordinado ao comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, são arrasadoras e não têm sido desmentidas. Na terça-feira admitiu que, contrariando a praxe e as convenções internacionais, a FAB entregou à Polícia Federal, as primeiras conclusões do inquérito sobre a colisão do Boeing da Gol com o Legacy. Em outras palavras: um alto funcionário do governo — o mais qualificado em matéria de segurança aérea — denuncia o Estado por proceder de forma indevida numa tragédia que desde o início foi intensamente politizada.
Na quinta-feira, o brigadeiro foi ainda mais contundente ao lembrar emocionado (diante da CPI do Apagão) que em 28 de Dezembro de 2006, no auge do colapso aéreo, depois de uma seqüência de três incidentes, o CENIPA recomendou a imediata reforma na pista principal de Congonhas: ‘Tudo leva a crer que teremos um acidente. Alguma atitude drástica temos que tomar… Mas não conseguimos evitar o que havíamos previsto.’
O brigadeiro não sabe se o novo ministro, isto é o governo, manterá no cargo um alto funcionário que de forma tão explícita revelou a apatia e, por extensão, a irresponsabilidade do Estado.
O que importa agora é a revitalização e a confiabilidade da máquina estatal. E quem pode fazê-lo é o governo. Desde que adquira uma postura séria, compatível com a gravidade da situação (sem piadinhas deletérias), desde que resista às soluções retóricas (como a entrega da Varig às ‘forças do mercado’) e, sobretudo, desde que tenha a coragem de estancar o aparelhamento político das instâncias técnicas.
Para salvar o Estado, o governo precisa descer do palanque.’
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