Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um coice na Amazônia

O jornal Folha de S.Paulo acaba de perpetrar, em sua versão online, dolorida patada na Amazônia, particularmente no estado do Acre e nos povos da floresta. A agressão está expressa na série de cinco reportagens assinadas pelo enviado especial Ivan Delmanto, que é apresentado como ‘pesquisador e coordenador teórico e de dramaturgismo do projeto Vertigem BR3, do Teatro de Vertigem’.

De fato, nas reportagens divulgadas no período de 15 a 27 de julho, o ‘pesquisador’ provoca vertigens nas mentes mais conscientes do Acre. Qualifica o Governo da Floresta (de Jorge Viana, do PT) de ‘famigerado’ e diz tratar-se apenas de uma estratégia de marketing para vender o estado. O seu símbolo, a castanheira, esvaziada do antigo sentido ‘subversivo’, na sua opinião simboliza agora ‘o projeto de desenvolvimento conduzido por latifundiários e empresas nacionais e multinacionais, que têm como carro-chefe a consolidação da indústria madeireira no estado’.

Insurgindo-se como historiador, Delmanto ameaça demolir monumentos e sentimentos tidos como inquestionáveis à luz de uma história recente. À saga da qual os acreanos tanto se orgulham, ele chama de ‘engodo nacionalista’ e garante que ‘não existiu’, ou que foi apenas ‘uma guerra imperialista de conquista’. Acrescenta, com segurança inaudita, que o general gaúcho Plácido de Castro comandou como líder do Exército Brasileiro essa conquista, quando se sabe que Plácido foi perseguido e morto por oficiais brasileiros, ou a mando destes após a revolução acreana em 1903.

Mau cheiro

As vertigens do ‘pesquisador’ insultam a doutrina do Santo Daime, um sincretismo religioso alimentado pelo chá Ayuasca (obtido da maceração do cipó jagube com as folhas chacrona) que é o traço cultural mais forte deste povo da Amazônia Ocidental. ‘Tudo parece orquestrado para potencializar o alucinógeno’, afirma, após insinuar que ocorre disputa de poder no Alto Santo, centro dirigido por Dona Peregrina que é viúva do Mestre Irineu, fundador da doutrina.

O especialista, que na companhia de uma troupe de teatro do Brasil desenvolvido e rico do centro-sul passou apenas algumas horas na Reserva Extrativista Chico Mendes, formou opinião na contramão do sentimento de quem conceituou e alcançou esta e outras Resexs na região: ao invés de admitir que as áreas são uma conquista dos seringueiros, ribeirinhos e índios que mudaram a visão tecnoburocrata do projeto de reforma agrária aplicado anteriormente na Amazônia, prefere detoná-las, bem como ao manejo florestal desenvolvido no estado, ao qual aplica a expressão ‘me-engana-que-eu-gosto’.

Em Brasiléia, na fronteira com a Bolívia, destaca um encontro que manteve com Osmarino Amâncio, um brigão dos ‘empates’ das décadas de 1980-90 que chegou a ser apontado como substituto de Chico Mendes. Para ele, Osmarino, que perdeu a liderança junto aos trabalhadores, arrasta uma solidão comparável com a ‘derrubada do cedro’, a árvore mais valiosa da floresta, o que é no mínimo discutível..

Na última paragem, Assis Brasil, na fronteira com o Peru e a Bolívia o escriba se supera em arrogância e preconceito. Tudo que vê – rio de água barrenta, casas, pessoas e até um índio que bebe cachaça numa praia – cheira mal e vira lama gosmenta.

Mais respeito

Os acreanos se perguntam com que propósito um jornal como a Folha de S.Paulo, que se pretende nacional, escolhe um intelectual de texto atraente mas duvidoso para ofender um povo que tem dado provas notáveis de brasilidade, e ensinado ao país como ser justo, humano e sustentável? Por que agredir um povo que há três décadas chama a atenção do mundo para a necessidade de preservar a Amazônia, chegando ao sacrifício de lideranças notáveis como Wilson Pinheiro e Chico Mendes, assassinados pela ganância de fazendeiros e outros predadores?

Nós, daqui desta Amazônia Ocidental, ficamos indignados com a visão canhestra de Ivan Delmanto, pois a mesma fortalece aqueles que combatem os esforços de governos amazônicos que aplicam o desenvolvimento sustentável na região. O Acre, em especial, tem um povo resistente e uma história que estão a merecer respeito e reconhecimento.

A Folha errou.

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Jornalista, no Acre