Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Um conflito interessante – I

Dois portentosos e destrutivos cogumelos atômicos, em 6 e 9 de agosto de 1945, selariam, para sempre, o fim de uma era e o início de outra. Ali estava o marco de um mundo no qual, irreversivelmente, se dava o salto da técnica para a tecnologia. Como em tudo, mutações ocorrem para o bem e para o mal. O aspecto ambivalente da questão é o foco do presente primeiro artigo que, em outra edição, merecerá desdobramento.


As aceleradas metamorfoses impostas por sucessivas inovações tecnológicas têm gerado, desde a segunda metade do século passado, crescente instabilidade ao que, em outros tempos, se definia como ‘padrão de vida ocidental’. Naquela época, as mudanças não afetavam a rigidez de certos paradigmas, quadro que se manteve enquanto a tecnologia esteve restrita ao campo dos experimentos nas diferentes áreas da ciência. Em que momento, pois, a cultura ocidental sofreu abalos profundos em seus princípios éticos e comportamentais? A instabilidade se marca (e constitui novo marco) com o ingresso da tecnologia numa área na qual, até então, reinava soberana a técnica. Refiro-me especificamente ao campo das linguagens.


Entre os anos 20 e 40 do século passado, um dos mais inquietos e imaginativos pensadores da Escola de Frankfurt, Walter Benjamin, sinalizava intenso estado de encantamento ante as promissoras ofertas advindas da fotografia e, em seguida, com maior entusiasmo, do cinema. As duas linguagens se afinavam com outra não menos vigorosa parceria: a criação e a técnica.


Sonho e pesadelo


Diferentemente do que, na mesma época, pensava outro filósofo, Martin Heidegger, Benjamin reconhecia na ‘reprodutibilidade da técnica’ a possibilidade de emancipação cultural das massas, principalmente pela força da imaginação criadora que provinha das provocações estéticas do cinema. Tal convicção, na visão de Benjamin, teria repercussões transformadoras no âmbito da política. Assim o teórico concebera: criação + técnica = democratização da arte + qualificação político-cultural das massas. Portanto, a criação (arte), amparada por uma técnica de perfil democratizante, reverberaria, politicamente, para um processo coletivo de transformação da realidade. Sob esse aspecto, o cinema se apresentava como ‘instrumento’ ideal: a reprodução ilimitada de cópias e a distribuição das mesmas em diferentes lugares do mundo firmariam o elo indissolúvel para a redenção das massas.


Benjamin, entretanto, não viveu o bastante para perceber que a perversa trama da história inviabilizaria o que ele sonhara. Eis, porém, que a tecnologia sofisticada, a serviço da guerra, contaminou o sonho de Benjamin com o pesadelo do horror. Benjamin morreu antes de ver a fusão entre sonho e pesadelo, cuja condensação adquiriria concretude nos dois cogumelos atômicos. A título de esclarecimento, informo que, a respeito das implicações mais profundas do pensamento de Walter Benjamin, escrevi alongado ensaio (‘Walter Benjamin e as questões da arte: sob o olhar da hipermodernidade’), publicado no livro A arte em questão: as questões da arte, organizado por Manuel Antônio de Castro (RJ, Ed. 7Letras / UFRJ, 2005. pp. 169-206).


A tecnologia e as linguagens


Nesse tópico é que se situa a questão de fundo, pretendida pelo presente artigo. Primeiramente, há de se definir, com clareza, o que ocorre, sob o ponto de vista semântico, quando a palavra ‘técnica’ sofre alteração morfológica para ‘tecnologia’. Por ‘técnica’, compreende-se um método para fazer o ‘objeto’, i.e., uma idéia casada a um modo de realização. Por ‘tecnologia’, entende-se um método científico de produção de saber, embasado no conhecimento. Em síntese, desejo pontuar que quando a técnica incorpora o logos (conhecimento), o criador atenua a força da ‘autonomia subjetiva’, em favor da afirmação de um modelo concentrado numa ‘ferramenta’, num instrumento de mediação.


Uma vez conceituada, para os limites de um artigo, a diferença entre os dois caminhos (técnica / tecnologia), cabe o enfrentamento crítico-analítico dos desdobramentos que se deram (e permanecem) no âmbito da produção de cultura. O primeiro ponto a ser constatado é que, após a invasão da tecnologia no campo das linguagens, não se detecta o mesmo vigor inventivo nas artes. Quero dizer que as novas gerações, que já encontraram as linguagens sob o domínio da tecnologia (música, cinema, teatro, literatura e artes plásticas), ainda não foram capazes de oferecer algo à altura da inventividade de outras cuja matriz era regida pelo domínio da técnica. Aqueles que incorporaram, à técnica, a tecnologia souberam (e sabem) somar qualidades. Quem, por outro lado, se fez na tecnologia das linguagens, apresenta resultados sofríveis. Os poetas concretistas, a exemplo de Augusto de Campos e Décio Pignatari (Haroldo de Campos faleceu em 16/08/2003), de modo competente, absorveram as contribuições da técnica, a posteriori, da tecnologia e, atualmente, continuam em expansão criadora. A propósito, a morte de Haroldo de Campos me inspirou artigo publicado no OI, ‘Haroldo de Campos: a mídia entre perdas e danos’, 26/08/2003).


Videografias, uma nova expressão


Ainda no rastro da geração que se formou na hibridização dos modelos, o registro inclui os tropicalistas e, adiante, na mesma linhagem, a inclusão do múltiplo e diversificado artista Arnaldo Antunes, que, com vigorosa destreza, opera de modo inventivo as distintas propriedades do código verbal, vocal e visual, do que resulta a simbiose do processo triádico a configurar-se na criação verbovocovisual, cuja primeira síntese Antunes materializou no projeto artístico ‘Nome’, em 1993.


Para melhor equacionamento acerca do que pretendo analisar, recordo experiências de uma época na qual os limites da técnica eram levados à potencialização máxima de suas possibilidades, sob o incontido impulso criador. Ilustro a observação com alguns exemplos. Pouco tempo depois de surgir a máquina fotográfica, alguém, tocado pela experimentação, resolveu alterar o diafragma, abrindo-o e fechando-o para além e aquém de seu ponto de ajustamento e fotografou. Daí, teve-se a percepção de quantos outros efeitos estéticos e criativos o ato de fotografar propiciaria. Inaugurava-se então o atalho para a fotografia artística. No cinema, não foi diferente. A câmera nas mãos de um Eisenstein e de um Buñuel se tornou objeto a serviço da mais alta genialidade em filmagem e montagem. Os exemplos não se esgotam aí.


No limiar dos anos 60, o coreano Nam June Paik, falecido em 29/01/2006, inconformado com o pouco que a TV oferecia, teve a idéia de agregar um pedaço de ímã ao tubo de televisão. Como resultado, ao ligar a TV, surgiu, na tela, uma profusão de imagens distorcidas, além de variações cromáticas entre branco, preto e cinza. Naquele momento, nova modalidade expressional era doada ao campo das artes: as videografias.


Efeito inibidor


Diferente não se deu no âmbito da indústria fonográfica. Num acanhado estúdio da EMI-Odeon, o virtuoso cérebro de um maestro, arranjador e produtor de disco, George Martin, ao lado dos ‘quatro rapazes de Liverpool’, com o modesto recurso de apenas quatro canais, cada um conectado a um gravador de rolo, consegue mixar a pletora de sonoridades e instrumentos para, em junho de 1967, entregar ao mundo o maravilhoso álbum Sgt. Peppers’ Lonely Hearts Club Band. No Brasil, outros não ficariam atrás, a exemplo dos talentosos Rogério Duprat, Julio Medaglia e, em seguida, Wagner Tiso, Rildo Hora e daí por diante.


Somente tempo depois quatro canais passariam a oito, 16, 32, 64 e… Todavia, o que se tem, em disponibilidade, hoje, após tanto avanço tecnológico, não se iguala, menos ainda supera, o realizado em épocas cujos recursos técnicos eram tão limitados. A conclusão é simples: a sofisticação tecnológica, no campo das linguagens criativas, não vinga sem o principal, ou seja, o vigor criativo da idéia. Esta é da ordem da dimensão subjetiva. Ao contrário, a possibilidade de tantas novas combinações e codificações, por conta do que as atuais ferramentas disponibilizam, pode gerar efeito inibidor. Esse é um risco a ser considerado. Outras questões serão abordadas no próximo artigo.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (RJ)