Um documentário israelense está freqüentando alguns festivais internacionais e foi exibido em São Paulo, há algumas semanas, para uma platéia de não mais que 200 pessoas. É, no entanto, uma aula de Brasil que deveria estar ilustrando as primeiras páginas de muitos jornais brasileiros. Fala de uma menina brasileira, nada diferente de muitas meninas sobre as quais lemos todos os dias.
O show em que se transformou o noticiário praticamente já fez com que a tragédia da pequena Isabella Nardoni ficasse esquecida. Seu drama aconteceu ontem, mas os suspeitos foram presos e, depois de Isabella, muitas outras meninas foram assassinadas no país. Como se suspeitava, Isabella virou apenas um número.
O documentário israelense que está rodando o mundo refere-se a um caso acontecido em 1986, do qual alguns talvez se lembrarão. Naquele ano, um bebê brasileiro, Bruna Aparecida Vasconcelos, desapareceu de sua casa na periferia de Curitiba e foi parar nas mãos de um casal em Israel. A adoção não foi formal. A criança foi vendida por 5 mil dólares em circunstâncias nebulosas. Acusou-se uma falsa babá de ter seqüestrado Bruna; outros creditam a venda à própria mãe. O fato é que, dois anos depois, financiados por um programa de TV sensacionalista de Manchester, na Inglaterra, os pais biológicos de Bruna obtiveram da Justiça israelense a devolução da criança. Foi um caso rumoroso.
Um papel insubstituível
Há dois anos, a cineasta israelense Nili Tal desembarcou no Brasil para investigar o que tinha acontecido com Bruna nas duas décadas que se passaram. Eis o que viu: Bruna é hoje mãe de dois filhos, de pais diferentes, cujos paradeiros ela desconhece. O primeiro filho, ela o teve aos 14 anos de idade. Os pais de Bruna são separados. Na verdade já o eram quando prepararam a encenação em Israel (o que fica provado no filme). A mãe de Bruna, Rosilda Gonçalves, não quer, nas suas próprias palavras, ‘ouvir falar’ de sua filha – e muito menos do ex-companheiro. O pai, Luiz Américo, alcoólatra, passa os dias se arrastando num casebre miserável, sem luz e sem gás, onde Bruna vive de favor. Pai e filha agridem-se incessantemente, em turras pavorosas. Algumas delas são documentadas pelo filme. Cada um afirma desejar que o outro esteja morto.
Luiz Américo fez dez filhos. Rosilda fez sete.
Os dois filhos de Bruna também foram abandonados por ela, que os deixa sozinhos em casa ‘para ir buscar homem na rua’, nas palavras da sua mãe. Foram parar num centro assistencial, que também arranjou um emprego para Bruna. Mas a permanência no emprego durou pouco e as crianças saíram dali. O filme documentou a noite em que um deles quebrou o braço vagando pelas redondezas. A polícia enviou os menores para o Conselho Tutelar. Hoje, não se sabe mais onde eles estão.
Quando mergulham na infância brasileira, muitos documentários assemelham-se a filmes de terror. Praticam bom jornalismo, com o tempo e o foco que são geralmente escassos nas redações. Mas dão aos fatos uma perenidade que a imprensa – e muito especialmente a televisão – tornou-se incapaz de fazer. Essa imprensa precisa de uma Isabella todos os dias. Aqueles filmes tem um papel insubstituível para explicar a existência de Isabellas.
Esperando a vez de serem notícia
O quadro que envolve Bruna é composto pela desagregação familiar, hipocrisia de políticos e cumplicidade da mídia. O filme de Nili Tal mostra a armação primária feita pelos brasileiros que foram buscar a filha em Israel. O arquivo da época não deixa dúvida quanto às reais intenções dos pais brasileiros e de seus cúmplices – aqueles, em busca de dinheiro, estes, em busca de boas notícias. Algumas seqüências depois, o filme reproduz a euforia da miserável população local, estimulada pelos jornais e pela televisão, quando da chegada da criança ao Paraná. É um espetáculo grotesco.
Bruna agora volta ao mesmo local da ovação, mas já não há ninguém para saudá-la. As ruas estão vazias e o sofrimento a que ela foi condenada pela farsa é ignorado. A bola da vez é outra. A vida de uma criança – e de seus descendentes – foi destruída impunemente pela espetacularização de um caso cujo epílogo era fácil prever. Não importa, pois outras Brunas surgiriam, como muitas surgiram até a chegada de Isabella e o seu esquecimento.
O jogo é pavorosamente reiterativo. O primeiro tempo consiste em achar os culpados. O segundo, em vestir as camisetas brancas da paz nos coadjuvantes. Como disse a jornalista Cora Ronai, depois de ser assaltada: ‘Agora está tudo bem, até o próximo assalto’. De certa forma, estamos condenados a reportar os fatos – uma criança assassinada, um esquema de corrupção descoberto – e nos tornarmos meros espectadores de nossa incapacidade de mudar. Há 20 anos, a regra era ganhar a queda-de-braço jurídica e trazer Bruna para viver a vida miserável que ela viveu.
Em Israel, os ex-pais adotivos de Bruna adotaram uma criança israelense, que tem hoje a mesma idade da quase filha brasileira. O Brasil tem hoje 8 milhões de crianças abandonadas, esperando a vez de ser notícia na mídia. O que está de fato nos impedindo de construir um país melhor para as Brunas?
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Jornalista