É antigo o golpe do jornal que traz na capa manchete com duplo sentido. A chamada aponta para uma situação, mas o texto nas páginas internas se remete a outra. Quando passa pela banca e vê a capa alarmante, o leitor é levado a acreditar que tem diante de si uma grande novidade, uma ‘bomba’, uma informação da qual não pode prescindir. Corre até o balcão e compra o jornal, levando gato por lebre.
Esse tipo de golpe é antigo, mas ainda funciona. Foi o que aconteceu em 11 de março com os leitores do Independente, jornal editado em Itapema (SC) e que circula pelas cidades da chamada Costa Esmeralda, no litoral norte catarinense.
Quem avistou o tablóide naquela sexta-feira, leu a manchete ‘Itapema vibra com o fim do prefeito corrupto’. A chamada em letras garrafais em cor branca fazia alto contraste com um fundo preto. Abaixo dela, uma foto alterada digitalmente, de forma a dificultar a identificação do homem que passava a mão na testa. Sua expressão – olhos fechados, cenho franzido, boca entreaberta – poderia ser de felicidade ou de desespero. Mas a legenda logo ‘informava’: ‘O final reservado ao bandido contentou a comunidade’.
Entendendo melhor
Aquela poderia ser mais uma edição comum do Independente, não estivessem os leitores e eleitores de Itapema em estado de alerta desde agosto de 2004. Naquela época, por decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina em plena campanha pela reeleição, o prefeito Clóvis José da Rocha (PFL) foi afastado do cargo, suspeito por irregularidades administrativas.
Mesmo fora da prefeitura, Rocha venceu as eleições e uma liminar o reconduziu ao cargo em dezembro passado. De lá para cá, ouve-se pela cidade que o prefeito pode cair a qualquer momento, já que as ações contra ele estariam próximas do seu julgamento definitivo.
O Independente entra nesse contexto. O jornal, que existe desde setembro de 2001, é um dos maiores opositores do político, atacando abertamente Rocha. Em diversas ocasiões, o editor e proprietário do jornal, André Gobbo, escreveu professando a independência da linha editorial em relação ao poder público. Em outras tantas, permitiu que os leitores percebessem claramente a postura de oposição do veículo.
Quando o prefeito foi afastado pela Justiça e o presidente da Câmara do Vereadores assumiu a vaga, um editorial do Independente saudava a chegada do novo mandatário da cidade, enaltecendo as qualidades do vereador e enxergando nele a ‘encarnação de um elo entre todos os que estavam, por longo tempo, excluídos, perseguidos e humilhados’.
Mudança de estratégia
Se em algumas vezes o jornal foi para o ataque frontal, ultimamente a estratégia tem sido outra: ir pelos flancos. Na edição anterior, do início de março, a manchete era ‘Biribinha é candidato a prefeito de Itapema’. Ocorre que o tal candidato é o palhaço de um circo mambembe, instalado na cidade desde 2004.
Não bastasse a ironia que a manchete fora de hora provoca – as eleições municipais só devem acontecer daqui a quatro anos –, a abertura do texto é um confronto direto com o atual prefeito Clóvis Rocha:
‘Se Itapema já está farta de palhaçadas no poder público, um palhaço a mais, um palhaço a menos não fará muita diferença. Porém as expectativas sobre a gestão do novo ‘prefeito-palhaço’ parecem ser grandes por parte da comunidade local’.
A matéria aproveitava o gancho oferecido pelo próprio Biribinha, já que o palhaço estrela um número circense em que interpreta um candidato a prefeito, e estimulava a comparação entre Rocha e o artista.
A mudança de estratégia nos disparos do Independente contra a prefeitura pode ser percebida também na alteração do slogan que o jornal trazia abaixo de seu logotipo. Se antes era ‘A notícia sem censura, feita por quem sabe!’, agora o tom é marcadamente populista: ‘A notícia do povo para o povo’.
Resumo da novela
A edição de 11 de março, que alardeia o final trágico do prefeito corrupto, carrega consigo um estelionato jornalístico. Lançando mão de um expediente condenável, o Independente joga com as expectativas do leitor à medida que chega às bancas com uma manchete enganosa.
Na verdade, conforme se percebe no texto das páginas internas, o prefeito corrupto a que se refere o jornal é o personagem vivido por Eduardo Moscovis na telenovela Senhora do Destino, da Rede Globo. Personagem que foi enfrentado por seus eleitores e apedrejado por um popular a ponto de morrer – evidente metáfora do poder do povo que se conscientiza de seus direitos.
O leitor que passou pela banca e foi atraído pela apelativa manchete só descobrirá bem depois que o texto se refere aos capítulos finais de uma telenovela. Mas o engano não reside apenas aí. A legenda da primeira página é mentirosa também, já que se refere a um contentamento da população difícil de se averiguar. A foto que serve de referência à legenda traz um detalhe do ator – nos trajes do personagem – agonizando. Mas a foto foi deliberadamente manipulada para que não fosse fácil a identificação de Moscovis, e assim, a remissão ao prefeito verdadeiro pudesse ser feita. A artimanha reforça o duplo sentido, e torna a escolha da manchete uma ação de sensacionalismo barato, digna do já extinto jornal paulistano Notícias Populares.
Sorrateiramente, o jornal ataca o prefeito, mas provoca outras vítimas também: os leitores, que pagaram por uma informação e, na verdade, tiveram um resumo do penúltimo capítulo da novela.
Sem perdão
Evidentemente não há problemas no fato de o Independente fazer oposição ao prefeito da cidade. Muito pelo contrário, espera-se que a mídia fiscalize mesmo os poderes constituídos. O que não dá para aceitar é que essa resistência atropele as regras do bom jornalismo, a ética e a responsabilidade social que os meios devem ter.
O estelionato jornalístico promovido pelo jornal na edição de 11/3 é um contra-exemplo de como se deve fazer jornalismo. Millôr Fernandes já disse que ‘imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados’, mas certamente as estratégias do Independente não passam nem perto do que o jornalista pensara.
A tática do duplo sentido deve ter rendido ao Independente boa vendagem em banca, naquele dia. Mas é certo que o episódio trará outros dividendos, não passíveis de se contabilizar. Ao enganar o leitor, ao manipular a opinião pública e ao atropelar a ética jornalística, o jornal de Itapema colhe também sérios danos à sua credibilidade. Assim como é capaz de avaliar o prefeito da cidade, o povo saberá julgar também os jornais que lê.
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Jornalista e doutor em Ciências da Comunicação; professor da Univali e coordenador do Monitor de Mídia