Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um exercício para as próximas eleições

Bairrismo, marketing, abuso da ignorância generalizada, agressão à lógica, à democracia, à ciência e às verdadeiras intenções da Unesco. Assim foi a votação das novas sete maravilhas do mundo.

Antes que você exploda emocionalmente por causa de sua ‘verdadeira’ admiração pelo Cristo Redentor e trucide este texto, deixe terminar meus argumentos. Depois, se não concordar, tente me convencer do contrário. Não tenho nada contra o Cristo – se bem que já fui lá e não achei a menor graça –, mas contra a votação e o método utilizado.

Falo de bairrismo por causa da exploração barata do nacionalismo, fazendo a população de cada país onde houvesse um candidato se mobilizar maciçamente pelo ‘seu’ candidato. Ora, você vota num político apenas porque ele é de seu bairro – apesar das biritas homéricas nos finais de semana, sua falta de formação acadêmica e de algumas acusações de corrupção – ou porque ele demonstra um histórico ilibado e um projeto político-social relevante? E, se for pela segunda opção, importa de que bairro ele seja?

Falha lógica ou de caráter?

Essa votação foi tendenciosa, se tornou uma ‘causa’ sem que as pessoas soubessem que causa era essa.

Falo de ignorância generalizada, pois acredito que a imensa e esmagadora maioria dos votantes não conhecia os outros ‘candidatos’. Numa eleição política, você votaria no único candidato que estivesse nas TVs, rádios, outdoors e internet, ou procuraria saber quem são e o que propõem os demais? A eleição do Cristo e dos outros foi assim. Cada país fez, internamente, propaganda apenas do ‘seu’.

Não há como votar conscientemente se você não conhece ou, numa falha ainda maior, nem liga para os demais candidatos.

Arrisco dizer que grande parte dos brasileiros votantes nem sequer se lembrava em seu dia-a-dia da existência do Cristo Redentor ou, se lembravam, com certeza sua importância em termos de maravilha nunca foi cogitada, sendo a estátua colocada em segundo plano sempre que comparada ao seu próprio vizinho, maravilha feita pela natureza: o Pão de Açúcar.

Aliás, por falar em ‘seu’ candidato, aí temos uma falha lógica. Note: se era para eleger maravilhas ‘da humanidade’ deveríamos pensar globalmente (humanidade) e não localmente (brasileiros). A tal maravilha que merecesse nosso voto deveria ser escolhida entre todas do planeta. Essa foi mesmo uma falha lógica ou de caráter? Hmmm…

Brasileiro não sabe ‘pensar’

Foi uma afronta à democracia e à ciência também. Países como o Camboja, onde estão os verdadeiramente maravilhosos templos de Angkor, não tiveram a menor chance nesse processo. O número de cambojanos com acesso à internet e telefones é reduzidíssimo e mesmo que toda a população do país os tivesse não teria sido suficiente. Em tempos politicamente corretos e de atenção às minorias, foi um crime.

Nessa votação, verdadeiramente medidos foram a capacidade de mobilização nacional e o acesso de suas populações aos meios para votar.

Pior: contrária às nobres intenções da Unesco de preservar o patrimônio histórico da humanidade ameaçado de desaparecer por motivos de guerras ou descaso, ‘a atenção se centrou em um pequeno número de monumentos já muito célebres, o que desviou a atenção de locais que estão em perigo’, segundo Nicole Bolomey, uma especialista da Unesco que trabalha na Índia. O diretor do departamento de antiguidades egípcias Zahi Hawass qualificou o concurso de imensa ‘operação publicitária’.

Não é que o brasileiro não saiba votar. O brasileiro não sabe ‘pensar’, não consegue se segurar diante de uma ‘onda’ e embarca nela às cegas. Nas eleições políticas, vence sempre o candidato com maior poder de fogo na mídia.

Sete isso, dez aquilo

Resta agora saber o que será feito pelo nosso Cristo Redentor e pela comunidade à sua volta. De braços abertos para a ‘cidade maravilhosa’ cravejada de balas perdidas, um político disse que a estátua merecia ganhar, pois abençoa diariamente a cidade. Com tantas mortes, chacinas, tráfico e violência contra mulheres em pontos de ônibus, me parece que essa bênção está vencida há tempos.

Com a vitória, é possível que mais turistas venham visitar a ‘maravilha’. Espero, sinceramente, que não sejam todos assaltados em seus ônibus, acabando de vez com nossa imagem no turismo internacional.

Com o sucesso dessa votação – e a montanha de dinheiro que levantou para a ‘fundação’ New7wonders – não tardarão a surgir outras sete isso, dez aquilo. E assim a gente vai. Para onde, não sei.

******

Publicitário, São Paulo, SP