Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um fator de risco

Um oficial do serviço secreto do exército dos Estados Unidos perguntou a Albert Speer, preso em 1945 à espera do julgamento dos criminosos de guerra nazistas pelo Tribunal de Nuremberg, dentre os quais era o mais destacado, o que devia fazer para progredir na vida e ser útil ao seu país. ‘Explore o seu carisma’, recomendou o arquiteto-chefe de Adolf Hitler. Era o conselho mais poderoso que ele podia dar. O carisma salvaria o próprio Speer de ser enforcado junto com os outros 10 principais representantes do III Reich presos pelos Aliados, alguns dos quais com um currículo menos negativo do que o próprio ministro. Ele foi o responsável pelo funcionamento da terrível máquina de guerra do nazismo, que matou dezenas de milhões de pessoas.


Durante 12 anos, Albert Speer foi o auxiliar mais próximo de Hitler, executando todas as suas ordens, exceto a final: destruir tudo que ficasse atrás da retirada das já derrotadas tropas alemãs, na mais selvagem das políticas de terra arrasada de todos os tempos. No que pôde, Speer não cumpriu a determinação. Foi além: disse pessoalmente ao Führer que, dessa vez, não faria a sua vontade. Hitler, seus assessores e o III Reich passariam, mas a Alemanha devia continuar. Surpreendentemente, o maior dos ditadores da história não mandou executar o auxiliar insubmisso, como teria feito a qualquer outro, incluindo Herman Göering, o marechal do Reich, o segundo na linha sucessória propriamente militar (ou paramilitar).


Pelo contrário: Speer é que chegou a conceber um plano para liquidar Hitler e sua equipe mais íntima, já refugiada no bunker ao lado da chancelaria, em Berlim, onde o Führer passaria seus dias derradeiros e se suicidaria, quando as tropas russas já ocupavam a capital. Ao depor em Nuremberg, Speer disse que um detalhe, que impossibilitava a liberação de gás para o interior da casamata, o impediu de matar Hitler antes que ele completasse a destruição do país. Se o III Reich não ia mais durar um milênio, Hitler queria levar tudo que pudesse consigo para o inferno, sem o sentido alegórico da expressão.


Olhar sobre o subúrbio


Nunca se conseguiu provar ou desmentir essa hipótese. Foi em torno dela, como fato concreto conhecido apenas por ele próprio, que Speer construiu sua brilhante tese de defesa: de que foi leal a Hitler, mesmo em seus paroxismos de loucura, enquanto ele foi leal à Alemanha; quando o exercício poder pelo Führer se tornou estritamente pessoal, e assumiu um caráter paranóico, Speer manteve lealdade apenas à Alemanha.


Mero oportunismo? Não exatamente, já que ele foi ao bunker comunicar a Hitler que decidira se dissociar. E, surpreendentemente, saiu de lá incólume. Estava são e salvo ao ser localizado pelas tropas aliadas, às quais se entregou pacificamente. A partir daí, desmontou o esquema de defesa concebido e liderado por Göring, que, derrotado, conseguiu se suicidar horas antes da execução.


Speer cumpriu os 20 anos da sentença na prisão de Spandau, preparando o novo enredo que desenvolveria a partir da liberação, não só pela postura pública que assumiu, sempre tranqüilo e aparentemente sincero, como através de dois livros, que causaram enorme impacto mundial, se tornando best-sellers e lhe permitindo encerrar sua biografia, em 1981, com a imagem de um renascido, que se purificou purgando sua culpa. A imagem correspondia ao que estava por trás dela? Uns acham que sim, outros garantem que não. O mistério, porém, é maior do que as duas convicções antitéticas. Foi a obra prima intelectual de Speer, tenha sido ele sincero ou não. É um dos casos mais incríveis de utilização do carisma, que, em certa medida, superou outro exemplo ainda mais notável, o do próprio chefe. Adolf Hitler teve que se suicidar. Speer morreu ‘de velho’, em casa, e redimido.


Sempre que penso em carisma, a história do arquiteto do nazismo me vem à memória como um paradigma, um tipo ideal, na visão das ciências sociais, ou um arquétipo, segundo a psicanálise mítica de Jung. Luiz Inácio Lula da Silva tem um poderoso carisma e sabe manejá-lo tão bem quanto Speer, embora nesse paralelismo seja necessário descer alguns degraus intelectuais ao passar do alemão para o brasileiro (ou subir, se a escala é de valores morais e éticos). Quem se aproxima mais de Lula parece sentir por ele um fascínio que pessoas inteligentes e talentosas sentiam por Hitler ou Speer. Por isso ficaram ao lado deles, seguindo suas ordens mesmo quando não concordavam com seus fins. Como puderam ser tão leais, obedientes e submissos a uma pessoa que, por diversos critérios, exceto o do carisma, lhes era inferior?


Muitas confiavam no acerto das decisões do chefe. A Alemanha crescia, retomava sua pujança, voltara a ser poderosa. Não era por causa das diretrizes estabelecidas pelo Führer? Não era por sua clarividência e talento pessoal? Não quero fazer qualquer tipo de paralelismo entre Hitler e Lula, pessoas completamente diferentes. O que os aproxima é apenas a força dos seus carismas, o maior – e de longe – dos seus atributos. O Brasil não está crescendo como nunca? Uma longa caminhada pelos subúrbios de Belém, como as que faço semanalmente, é uma resposta afirmativa. A presença do poder público, através das obras de infraestrutura, não é tão marcante quanto a participação das pessoas. Elas constroem casas, reformam as que já têm, acrescentam-lhes novas dependências, adquirem um ou mais carros, vê-se que estão se vestindo melhor e aparentam um ar de satisfação.


Conversa franca


Parte do dinheiro para custear esses investimentos vem dos salários e da renda que estão recebendo. Há mais riqueza em circulação no país. Está sobrando quantitativamente mais para aqueles que costumavam ser excluídos da repartição. Mas está havendo também mais acumulação relativa. Podem-se ver os efeitos da repartição tanto nos subúrbios quanto na área rural, onde é sensível a multiplicação provocada pelo salário mínimo, com crescimento real, e pelas bolsas compensatórias.


Mas também é ostensivo o crescimento na parte de cima da pirâmide social, que está menos delgada do que antes do Plano Real I (o maior enriquecimento da elite) e se alargou um tanto mais com o Real II (o redistributivismo de curto fôlego do lulismo). Em compensação, os contrastes se tornaram tão brutais que passaram a funcionar como estímulo para um banditismo de pilhagem e conquista, em constante expansão pelo poder de atração que exerce sobre os jovens, aproximando-os do reduto do alto consumo da elite, topograficamente situada ao alcance de sua delinqüência. O caos criminal seria o preço a pagar pelo crescimento acelerado do país como um todo, num modelo que, por sua própria natureza, gera desequilíbrio e conflito.


É assim que o Brasil se tornará potência mundial, na trilha dos países que chegaram ao topo sem eliminar suas chagas sociais, como os Estados Unidos, cevado no consumismo e minado pela violência generalizada? Não deve passar pela cabeça de Lula um lulismo milenar, mas ele está trabalhando de tal forma o seu carisma para ser tão duradouro quanto Getúlio Vargas, o maior ditador – com e sem voto – da república. O carisma que Getúlio trabalhou foi o de ser o pai dos pobres (e do país). A legitimidade de Lula é ainda maior: ele é o próprio pobre, que assumiu a paternidade da história a partir do momento em que ficou com o controle dos principais cordões do poder (e do discurso prolífico, sem compromisso com a razão e a história). Esse projeto pode não ter horizonte milenar, mas não se esgota em dois mandados sucessivos pelo voto. Na verdade, nem se limita ao voto.


Empreitada de tal envergadura está além dos talentos pessoais de Lula, por mais prodigiosos que eles nos sejam apregoados (e o são de fato). Uma cena da intimidade do poder, felizmente documentada através da imagem (graças à onipresença das câmeras, multiplicadas à elefantíase pela existência dos aparelhos celulares), revela a engrenagem dessa máquina de mitificação sobre o carisma de Lula. Uma equipe de Moreira Salles filma uma reunião da cúpula do PT para a primeira campanha presidencial de Lula. A conversa é franca e íntima. De repente, o plenipotenciário José Dirceu se dá conta da câmera e pergunta quem são aquelas pessoas. Gilberto Carvalho, eterno secretário particular de Lula, o tranqüiliza: ‘é gente nossa’.


Confidência do presidente


Com um senso de superioridade próprio daqueles que sabem o que podem (e quanto), Dirceu desdenha a segurança do companheiro. Lembra que uma equipe amiga como aquela registrou as infelizes expressões de Lula sobre a masculinidade do eleitor de Pelotas, no Rio Grande do Sul, causando estragos na horta eleitoral gaúcha. Dado o alarma por aquele que sabe o que sabe, Lula passa rapidamente ao fundo, como um trânsfuga, um meteoro, para sair de cena, livrando-se do risco iminente do desgaste. Para não deixar pistas, uma das suas mais usadas habilidades. Não o teria feito sem o alerta experiente de José Dirceu. Dirceu era – e é – o mais sabido, mas não seria o que foi – e continua a ser à sombra – sem o carisma de Lula, o elemento mais importante desse projeto de poder em curso.


As insuficiências, lacunas e contradições desse projeto são visíveis para aqueles com o mínimo de meios para ver por trás das aparências e superficialidades. Há mais renda para todos, mas grande parcela da capacidade de compra e investimento não resulta de poupança real, mas de endividamento. A sangria do crédito foi atenuada pelo corte dos juros extorsivos, de agiotagem pura, mas não foi estancada. Avança sobre a geração de riquezas no país, grande parte das quais seguem para o exterior e não serão renovadas, como os minérios e seus derivados.


A parte que fica é mais significativa do que em qualquer outro momento da história do Brasil, mas muito dessa estrutura de riqueza que fica tem base frágil ou fantasiosa. O nosso ainda não é um desenvolvimento sustentado, como se diz nas bulas do poder. Talvez nunca venha a ser. Pode ser que estejamos desperdiçando a melhor oportunidade que a história nos proporcionou, desviando nossa atenção para o fenômeno carismático de Lula, que agora é trabalhado como se fosse a estrela a guiar os navegantes sem bússola (ou GPS) no escuro da noite sem outra estrela. O que parece ser um destino onírico pode vir a se revelar um buraco negro.


A nomenklatura, em parceria com o establishment, está criando um herói nacional. E nos fazendo esquecer a advertência de Galileu pela boca de Bertolt Brecht: infeliz do país que precisa de heróis. Suficientemente bem informado para captar esse quadro, César Benjamin, que é dono da Editora Contraponto (do Rio de Janeiro) e professor da Fundação Getúlio Vargas, quis mostrar a nudez do rei. Num artigo publicado pela Folha de S. Paulo, fez referência – pela primeira vez – a uma confidência de Lula, que teria admitido assédio a um homem com quem dividia a prisão em São Paulo, em 1981. Sem mulher o então metalúrgico não conseguia passar. Encarou o prisioneiro ao lado e tentou forçar uma relação.


Material poluído


Fiquei chocado com o artigo de César Benjamin. A súbita introdução do episódio escatológico quebrou a seqüência do texto com uma sujeira descabida, sem encontrar um mínimo de coerência para estar ali. Ainda que fosse verdade, o episódio não devia ter-se tornado público porque o autor da revelação chocante não teria como prová-la. Nem o jornal devia ter acolhido a indiscrição nem o responsável por ela devia tê-la tornada pública. Falava-se de ninguém menos do que o presidente da república. A solenidade do cargo e a biografia de Lula impunham acatamento e pudor, no mínimo (embora, às vezes, lhe falte esta última virtude).


Mas entende-se a raiz dessa atitude estabanada e irrefletida de César Benjamin, um intelectual respeitado por suas qualidades e um militante político com história. Ele queria proclamar sua indignação contra os amplos movimentos de um culto à personalidade como nunca houve no país, indo de um filme por encomenda à montagem de um circuito para propagá-lo por todo Brasil, inspirado em antecedentes terríveis, como os de Stálin, Hitler e Fidel Castro.


Com acerto, César constata: ‘Desconheço que uma operação desse tipo e dessa abrangência tenha sido feita em qualquer época, em qualquer país, por qualquer governante. Ela sinaliza um salto de qualidade em um perigoso processo em curso: a concentração pessoal do poder, a calculada construção do culto à personalidade e a degradação da política em mitologia e espetáculo. Em outros contextos históricos isso deu em fascismo’. Alarmado, ‘Cesinha’ decidiu fazer o que o povo chama de jogar farinha no ventilador – ou coisa pior. Mas um poeta de cordel também alerta aquele que cospe para cima: o cuspe lhe voltará na cara.


Há tanto cuspe sendo atirado para o alto, como efeito das imoralidades correntes no Brasil, que as vítimas se tornam aleatórias e o país, contaminado por esse material poluído, pode perder a sua melhor oportunidade de fazer história. Por acreditar em heróis – e por não haver heróis.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)