Hypocrites, na Antiguidade grega, era o indivíduo que, detrás de uma máscara, simulava à frente de uma platéia uma personagem mítica, fazendo pensar ou simplesmente divertindo. É o que hoje chamamos positivamente de ator, seja no teatro, no cinema ou na televisão. Mas na palavra ‘hipócrita’, clara derivação do grego, incrustou-se o significado negativo de ‘fingimento’, da esperta dissimulação de alguém que finge ou aparenta o que não é ou o que não sente. Sabemos muito bem o que é a hipocrisia, mas nem sempre nos damos conta das hipocrisias involuntárias, com que convivemos, tanto nas relações intersubjetivas quanto no que veiculam os discursos sociais.
Uma hipocrisia corrente diz respeito a fenômenos normalmente colocados na rubrica do ‘esotérico’. Quase ninguém, investido de racionalidade média – ainda mais quando portador de curso universitário –, admite publicamente seu assentimento ou sua crença em fenômenos que presumidamente violem as coordenadas científicas da causalidade relativa às categorias de espaço e tempo.
Em princípio, não há aí nada de mal, posto que os juízos guiados pelo senso comum estabilizam a consciência, em especial num campo onde abundam as fraudes ou as vigarices, cujas vítimas são sempre aqueles tendentes a crer em qualquer coisa que aponte para além da realidade banal do cotidiano. A hipocrisia aparece, entretanto, quando se acredita e se esconde a crença debaixo do tapete das conveniências sociais.
Pálidas justificativas
O episódio do lançamento do foguete brasileiro VSB-30 é ilustrativo, merece reflexão. Depois de dois anos de preparação e sete tentativas frustradas de lançamento, a odisséia do foguete terminou no mar. Na verdade, deveria terminar ali mesmo, mais precisamente a 165 quilômetros da costa maranhense, mas com a recuperação do módulo de carga útil. O problema é que o equipamento de localização, que emitiria sinais por ondas de rádio para os aviões, não funcionou, e o módulo se perdeu.
Um vexame: o naufrágio ‘pôs por terra os esforços da Operação Cumã II. Com 2,3 milhões gastos apenas na cápsula, a missão era considerada o maior passo do programa espacial brasileiro desde agosto de 2003, quando um acidente com o foguete VLS-3 matou 21 técnicos em Alcântara, no Maranhão’ (O Globo, 20/7/2007).
As conseqüências não destoam muito do que costuma acontecer em fiascos dessa natureza, ou seja, pálidas justificativas públicas, ‘rolagem de cabeças’ na coordenação etc. Há também os atenuantes da má sorte: a decolagem do foguete tinha sido adiada sete vezes por causa do mau tempo, o que levara a Aeronáutica a alterar procedimentos técnicos, visando a reduzir os efeitos do vento sobre o vôo.
Fenômenos nacionalíssimos
Até aí, tudo burocraticamente normal. Mas, de repente, fica-se sabendo que a Agência Espacial Brasileira (AEB) recorreu aos serviços da médium Adelaide Scritori para afastar os ventos de Alcântara e permitir o lançamento do foguete. Até aí, também, tudo compreensível para nós, por mais que isso pudesse parecer estranho a um observador estrangeiro, um desses aferrados à estrita lógica cartesiana do mundo.
A médium, como tem informado esporadicamente a imprensa brasileira, incorpora uma entidade denominada ‘Cacique Cobra Coral’, que seria capaz de interferir nas condições atmosféricas, a ponto de afastar chuvas e ventos. Existe inclusive uma Fundação Cacique Cobra Coral, responsável pelos contatos e acordos de prestação de serviços com governos e instituições – nacionais e estrangeiras. A Prefeitura do Rio de Janeiro é cliente habitual. Consta mesmo que um importante observatório estrangeiro teria um acordo formal com a Fundação.
E a hipocrisia? É que fenômenos dessa ordem convivem, na realidade brasileira, com declarados preconceitos – nos jornais, nas instituições acadêmicas, nos círculos das elites do saber – para com tudo aquilo que não se ajuste ao figurino do ‘racionalmente correto’. Basta dizer que funcionários da AEB confirmaram à imprensa o contato com a Fundação, mas ressalvando que o pedido de ajuda foi apenas ‘informal’. Hipocrisia pura.
O fato mesmo é que o Cacique Cobra Coral marca presença há muitos anos na esfera pública e nunca se viu uma avaliação jornalística séria do assunto. Os resultados poderiam lançar uma luz mais compreensiva sobre este e outros fenômenos nacionalíssimos, mas tão estranhos ao senso comum quanto, digamos, um foguete no fundo do mar.
A propósito, ‘a Fundação informou que o trabalho da médium não incluía a localização da carga’ (O Globo, 20/7/2007).
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro