Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um outro olhar sobre as eleições norte-americanas

As eleições, assim como os demais fatos cobertos pela mídia contemporânea, têm ganhado cada vez mais uma aura pop, de culto à personalidade e fabricação de celebridades. Este ano, para deleite desta mesma mídia, as eleições norte-americanas trazem dois fatos novos: a mulher e o homem negro, com reais chances de chegarem à Casa Branca. O homem negro, Barack Obama, tem alguns fatores a mais de fetiche. Para a América do Norte, profundamente racista, ele é um ícone por ser fruto de uma união interracial. Em seus discursos, que não abriram mão inclusive do YouTube, na internet, evoca a figura de Luther King, ao cunhar o slogan ‘We can’ (King imortalizou o ‘I have a dream’). É o queridinho dos jovens, exatamente por essa promessa do novo e, ao mesmo tempo, do desconhecido.

Já a mulher, Hillary Clinton, é a ex-primeira dama de um presidente, Bill Clinton, igualmente pop, que tinha como marca de celebridade o supostamente encantador hábito de tocar sax e a fama de playboy conquistador. De quebra, a figura de Hillary traz à baila a possibilidade de ser a primeira mulher a dirigir a nação mais poderosa do mundo. Componentes nada desprezíveis para quem quer animar coberturas e debates onde a última coisa que realmente interessa são as idéias.

O ‘destino manifesto’

É claro que se a disputa entre os republicanos já está selada, com a escolha de John McCain, sobra para a imprensa acompanhar a corrida entre os candidatos democratas. Mas o que tem impressionado na mídia norte-americana, e na geralmente pobre e reativa imprensa nacional, são as adesões quase automáticas às candidaturas democratas e a apresentação de uma das mesmas como um fato quase consumado na corrida à Casa Branca.

Anos de experiências com sucessivas eleições, aqui e alhures, estas parecem não ter ensinado a muitos entusiastas de candidatos-celebridades que o novo e o desconhecido não costumam empolgar o eleitorado na hora ‘H’. Principalmente, o eleitor norte-americano.

Este eleitor só arriscou o desconhecido em momentos muito específicos de sua história. Desde sua independência que os EUA se caracterizam pelo seu conservadorismo e pragmatismo, não apenas em política externa, mas sobretudo na escolha de seus representantes políticos internamente. Personagens como Lincoln, Luther King e Kennedy e seus destinos trágicos explicitam a baixa tolerância à mudança de uma sociedade que se acredita marcada por um ‘destino manifesto’, uma excepcionalidade que a credenciaria para contruir na Terra (em toda ela) o Paraíso.

Apoio às políticas belicistas

Desde que as grandes transformações econômicas, políticas e sociais da segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20 tornaram os EUA a maior potência mundial, o eleitorado norte-americano, e sobretudo a classe política, relutaram a aceitar mudanças profundas que interferissem nos pilares de seu credo mais profundo: a liberdade individual como eixo da coesão social e o fato de serem eles, os norte-americanos, os eleitos de Deus para a missão de pacificar o mundo. Mesmo em meio à maior crise social jamais vivida pela sociedade norte-americana, com os resultados da quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, o presidente Roosevelt teve enorme dificuldade para fazer passar no Congresso seu New Deal.

Mais recentemente, só para efeito de comparação, a política de Clinton, apesar de um discurso light, jamais abriu mão das ações bélicas. Lembremos a invasão e o posterior bombardeio da Somália, a intervenção no Kosovo e na guerra civil iugoslava, os oito anos de bombardeio ao Iraque e as ações no Afeganistão. Lembremos ainda das reduções orçamentárias dos programas federais de saúde voltados para os mais fragilizados, como o Medcaid e o Medcare.

O jornalista Thomas Frank, em publicação recente, apresentou sua perplexidade: ‘Por que os americanos que mais sentem negativamente as medidas conservadoras de Reagan, Bush, pai e filho, continuam apoiando as políticas externas belicistas extremamente dispendiosas e as políticas internas voltadas para a redução da proteção social?’ [Frank, T. What’s the Matter with Kansas?, Henry Holt Paperbacks, Nova York, 2005].

A encarnação do sonho

A resposta talvez esteja no fato de que os norte-americanos acreditam em seu credo de uma maneira ampla e profunda. Daí, as crenças que regem a conduta de seu eleitorado no presente: primeiro, o indivíduo realmente capaz sobreviverá; segundo, a ameaça ao reino da paz e da liberdade é real e apresentou-se vivamente nos ataques de 11 de setembro; e, por fim, a América profunda padece de uma crise moral sem precedentes, algo explícitado pelo caso Lewinsky.

John McCain não é nenhum queridinho da mídia, não diz frases de efeito e nem parece estar muito interessado no que pensam os jovens, mas reúne os elementos que mais agradam à média do eleitorado norte-americano. É o self-made man em pessoa. Foi militar e herói de guerra, o que garante a continuação do modelo de pax americana. Possui um passado moralmente imaculado. Se descolou habilmente da figura pessoal desgastada de Bush Jr. e, principalmente, já começa a mostrar o que será a verdadeira campanha presidencial. Recentemente, afirmou que Obama (provavelmente seu adversário no pleito) não entende nada de política externa e que também não tem experiência alguma administrativa. Quando a campanha começar para valer, os republicanos farão os eleitores lembrar que Obama ‘não tem nada a ver com a América dos verdadeiros norte-americanos’.

Não há dúvida de que a América dos (cada vez mais) ricos votará em McCain. Também a América dos (cada vez mais) pobres e da (cada vez menor e mais insegura) classe média votará em grande parte em McCain, pois, diferentemente das aparências, McCain não tem um sonho, ele é a própria encarnação de um sonho: o sonho norte-americano. Não seria mau negócio para a mídia começar, desde já, a olhá-lo mais detidamente.

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Respectivamente, coordenador adjunto do curso de Relações Internacionais da Facamp (Faculdades de Campinas) e jornalista