No final de 1969, numa matéria de capa histórica, a Veja se posicionou contra o assassinato, sob tortura, do militante da VAR-Palmares Chael Charles Schreier. Como ilustração, uma gravura medieval mostrando os suplícios do tempo da Inquisição: a donzela de ferro, a roda, os ferros em brasa etc. Marcou época.
Hoje, infelizmente, a Veja se entrega à mais rasteira demagogia, como na matéria ‘Um perigo chamado MR-8’, publicada na edição de 9/5/2007. A revista cometeu graves pecados jornalísticos em sua reação ao texto infeliz do jornal A Hora do Povo, que a um observador isento sugere menos uma exortação ao assassinato de Diogo Mainardi do que um gracejo malfeito: ‘…o pequeno canalha perdeu apenas algum dinheiro [ao ser condenado por caluniar Franklin Martins]. Sabemos o que o vil metal significa para certo tipo de pessoas. Ainda assim, ao que tudo indica, ele está pedindo para perder algo mais. Pode ficar tranqüilo. Não faltarão almas pias para fazer a sua vontade’.
Logo no subtítulo, a Veja qualificou o MR-8 de ‘terrorista na ditadura’, endossando um termo tendenciosamente aplicado pelos especialistas em guerra psicológica das Forças Armadas aos efetivos da resistência contra a ditadura que travaram a luta armada. Ou seja, a Veja encampou a propaganda enganosa da linha-dura militar de outrora e dos neo-integralistas atuais. Ficou na honrosa companhia de Brilhante Ustra…
Viúvas da ditadura
Independentemente de que, hoje, só a extrema-direita insiste nessa terminologia falaciosa, há o fato de que o MR-8 foi aniquilado pela repressão em 1969 e nada tem a ver com os atuais detentores da sigla.
O MR-8 original ficou conhecido principalmente por ter em seus quadros o bancário Jorge Medeiros Valle (apelidado de ‘o bom burguês’), que desviou cerca de 2 milhões de dólares para a guerrilha; e por haver planejado libertar presos políticos de uma ilha-presídio com um esquema mirabolante, que incluía mergulhadores. Depois que seus integrantes foram presos, a repressão se vangloriou, pela imprensa, de ter acabado com o MR-8. Em represália, a Dissidência Comunista da Guanabara, ao participar junto com a ALN do seqüestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, co-assinou o manifesto como MR-8.
O inusitado desse episódio fez com que ele ficasse na lembrança das pessoas… e, principalmente, dos jornalistas, claro. Então, a Veja não tem como ignorar que inexiste relação de continuidade entre o MR-8 original e o que hoje ela exageradamente acusa de ameaçar a vida de Mainardi.
Além do subtítulo indefensável, a Veja continuou ecoando a retórica das viúvas da ditadura no texto, ao afirmar que ‘o MR-8 e a ALN foram duas das organizações esquerdistas que, sob a bandeira da luta contra o regime militar, promoveram seqüestros, roubos a banco e atos de intimidação’.
Carta-desagravo
Em carta à redação da Veja, aprofundei essa questão, como ex-preso político que sou. Já houve tempo em que a ditadura afixava cartazes em logradouros públicos do país inteiro, com minha foto e meu nome, acusando-me falsamente de terrorista e assassino. É absolutamente inaceitável que continuemos a ser tratados dessa maneira em plena democracia. Então, espero que a revista tenha a decência de publicar esse desagravo, a mim e a todos os companheiros insultados por sua matéria:
‘O regime militar foi fruto da usurpação do poder por um grupo direitista que vinha conspirando contra a democracia desde os anos JK e já fizera várias tentativas golpistas (a principal delas, quando quase impediu a posse de João Goulart). Ao conseguir êxito em 1964, rasgou a Constituição e governou sob terrorismo de Estado. Então, os heróis e mártires que ousaram enfrentar o arbítrio, em situação de terrível desigualdade de forças, nada mais fizeram do que exercer o direito de resistência à tirania, que nos foi legado pela civilização grega, tanto quanto a democracia.
Os verdadeiros terroristas eram aqueles niilistas do século XIX que, incapazes de conduzir o povo à revolução, tentavam, com balas e bombas, criar o caos e impedir que a classe dominante governasse. Os movimentos de resistência ao nazi-fascismo e às ditaduras militares latino-americanos jamais quiseram criar o caos, mas sim conscientizar as massas e organizá-las para a derrubada dos tiranos.
Os seqüestros de diplomatas serviram para salvar presos políticos da morte e das torturas mais atrozes. As expropriações de bancos, para sustentar militantes clandestinos em condições de rigorosa clandestinidade. E nenhum ato de intimidação porventura cometido pelos idealistas (sempre há excessos, em conflitos desse tipo) equivale à prática sistemática da tortura por parte dos militares, atingindo dezenas de milhares de brasileiros, ou à política de extermínio por eles adotada a partir de 1971, quando passaram a levar os resistentes aprisionados diretamente para centros clandestinos de tortura, nos quais os massacravam e depois executavam, dando sumiço até em seus restos mortais.’
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Jornalista, escritor e ex-preso político, Celso Lungaretti é autor de Náufrago da Utopia