Um novo atentado de homem-bomba no Iraque preencheria a secundária da página nove. Era próximo das dez horas e o editor aguardava o texto que deveria ser espremido e engarrafado a tempo. O HD mastigava o que o jovem redator oferecia, não sem roncar zangado, engolindo frases truncadas e termos levianos. As informações sobre o número de vítimas seguiam desencontradas. Algumas agências divulgavam 30 mortos, outras 40.
O local da tragédia, de acordo com a France Presse, era um café clandestino onde soldados norte-americanos aproveitavam as horas de folga para esquecer os caprichos da Casa Branca. Já a Agência Estado apontava um pequeno supermercado de Bagdá. Ninguém na redação faria uma ligação para o Oriente Médio. Fossem 30 ou 40, fosse um circo ou um estábulo.
Um jornal pequeno tampouco mandaria um correspondente para saber o número certo. A alternativa poderia ter sido contatar a France Presse, mas a desculpa seria que ninguém ali falava francês ou inglês. Outra possibilidade teria sido telefonar para o Estadão, contudo, nenhum repórter teria a cara-de-pau de ligar e perguntar: ‘Ei, amigo, afinal, foram 30 ou 40? Estava tentando saquear o site de vocês e fiquei confuso.’
Meio termo
O editor tamborilava na mesa e olhava o relógio. De soslaio, mirava o jovem repórter. O novato redator pensou mil e novecentas vezes em pegar um avião e seguir aos confins da Babilônia para honrar o diploma caído, enquanto arrematava o último parágrafo. Pensou em encontrar a família das vítimas, conhecer os dramas e mostrar ao mundo os efeitos da barbárie. Por ora, não quis ser alvo de um tomahawk vindo direto da mesa do chefe. Preencheu o box de qualquer jeito como fazia com as palavras-cruzadas da página dezesseis. Saiu da linha inimiga.
Como um soldado que mata criancinhas, o periodista falou à sua consciência. Era apenas uma matéria de pé de página. Uma modalidade de terror daquelas não causaria nem enjôo nos leitores, tamanha a falta de ineditismo. Verdade dos fatos? ‘Tempo é emprego’ na imprensa. Pegou o ‘Manual da Folha’ e tornou o texto equilibrado, conforme a recomendação dos cânones. Entregou-o assim: ‘Homem-bomba mata 35 no Iraque’. Meio termo. Nem 30, nem 40. Afinal, não tinha como confirmar a informação.
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Jornalista, Porto Alegre, RS