Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um quadro macabro

Já era alta madrugada, após um dia de temperatura amena em Praga, quando, de volta ao hotel, resolvi sintonizar a TV. Eis que, no canal da CNN, para meu assombro, o Brasil se fazia notícia, por conta de mais um episódio sinistro de nossa história: um desastre aéreo no qual mais 199 brasileiros eram arrancados da vida. O prazer de andar pela Ponte Carlos e, em seguida, de transitar na contagiante Staromestské námestí (a praça central), um dos pontos de maior efervescência jovial da capital tcheca, ficara zerado pelo impacto do acontecimento. O sono desaparecera por completo, até porque a CNN mantinha a cobertura.

Ante a inevitabilidade do impacto, restava-me apenas dividir, com minha mulher, o sentimento de pesar, sem disfarçar certa revolta cuja origem se prendia a uma sensação de que, por trás daquele fato estarrecedor, não se encontrava o consolo de quem se vê diante da pura expressão da fatalidade.

Dias se passaram e notícias continuavam ocupando a pauta dos telejornais, tanto na CNN quanto na BBC, com menor presença na Skynews. Mal sabia que outra notícia, embora com dimensões distintas, marcaria minha viagem: encontrava-me em Estocolmo no dia da morte de Ingmar Bergman. O regresso ao Brasil coincidiu com a morte de outro não menos importante cineasta: Michelangelo Antonioni.

De volta ao ‘país tropical’, mais não fiz que acompanhar coberturas jornalísticas, sessões de ‘CPI do Apagão’, versões apressadas, vazamentos de conteúdos supostamente sigilosos, pífias declarações de autoridades, depoimentos evasivos e, principalmente, justificativas que, em bloco, isentam todos de qualquer cobrança. Com um certo ar disfarçado, setores (ir)responsáveis insinuam que alguma imprudência dos pilotos terá gerado o fato.

A mídia e o acidente

A mídia, tentando ser prudente, sonda a apuração de como funciona o serviço de manutenção das aeronaves e, superficialmente, pontua o montante de contingenciamento para aplicação em reformas e ampliações de aeroportos, sem muito aprofundar a possibilidade de corrupção que, há muito tempo, perpassa a Infraero, tema que adiante aparecerá.

Ao menos, o telejornal da Globo e matérias da Folha de S. Paulo (destaque para a edição do dia 3/8) trataram o cidadão com razoável respeito. As matérias deixaram claro que, 30 dias antes, o avião destruído sinalizava defeitos numa das turbinas. Todavia, inspeções apressadas liberaram a aeronave para futuros vôos, com a anotação de que estaria ‘em observação’. Quem ‘observa’ o destino de crédulos passageiros? Como classificar, eticamente, tal procedimento? Será que vivemos num país no qual ‘pagamos’ pelo ‘direito’ de morrermos quando não queremos? Será aceitável que ‘inspeções’ entre vôos conseguem detectar fadiga de material?

Enfim, mal se pôde compreender o que ocasionou a morte de 154 passageiros na colisão Legacy-Gol e já temos, dez meses após, de conviver com a perda de outras 199 vítimas. Mais de trezentas famílias, em menos de um ano, choram mortes geradas por logística de mercado, de um lado, e estabilidade econômica, de outro.

Autonomia crítica

Antes que algum leitor confunda o teor do presente artigo com qualquer apoio ao ‘movimento’ do ‘cansei’, esclareço que meu cansaço com o país provém de muito antes: desde o aborto das ‘diretas-já’. Não há, portanto, conotação alguma direcionada para o atual governo. Nem poderia. Afinal, onde estariam as diferenças? Bem o respondeu o artigo de Clóvis Rossi (‘Um caso para o Procon’), na edição da Folha de S. Paulo de 04/08. Voltando, pois, ao foco do quadro macabro, a verdade é que, no ar, somos produto descartável de grupos que, em terra, pensam em faturas. Nas ruas, somos alvo aleatório de balas perdidas e abordagens violentas. Nas rodovias, buracos inesperados nos aguardam após a próxima curva. A rede ferroviária estacionou no tempo e no espaço.

Em síntese, vivemos no país da imobilidade compulsória, caso não se deseje a morte precoce. Enquanto lágrimas não se esgotam entre familiares atingidos por perdas, corre, paralelamente, uma ‘guerra’ de informação e contra-informação entre duas fortes corporações aéreas: Boeing x Airbus. É bom a mídia não negligenciar a vigilância quanto a essa questão. Pretendo insinuar que o roteiro do ‘quadro macabro’ – se a mídia quiser ter, sobre ele, a autonomia crítica necessária – deve ser descolado de contaminações oriundas, tanto dos setores da política nacional (situação e oposição), quanto dos interesses de forças econômicas configuradas nas disputas internas (TAM x Gol) e nas disputas externas (Boeing x Airbus). Não será fácil. Todavia, não há outro caminho. [Texto concluído às 22h05 de 4/8].

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)