Mulheres, negros e pobres: eles foram, na última semana, as grandes estrelas do noticiário norte-americano. Foram personagens de uma história que, transformada em filme, deveria se chamar Katrina, a devastação causada pelo preconceito.
A imprensa americana registrou, mas não comentou, a reclamação do prefeito Ray Nagin, de Nova Orleans, acusando o governo de demorar com o socorro porque a cidade é de maioria negra. Mas, logo no dia seguinte, tratou de mostrar o prefeito mais calmo, agradecendo o suporte federal que estava a caminho.
Nem mesmo a declaração de uma senhora branca, de classe média, de que ‘a cidade estava mesmo precisando de uma limpeza, a criminalidade estava muito alta’, mereceu comentários. Muito menos a declaração, altamente preconceituosa, da ex-primeira-dama Barbara Bush: ‘A vida dessa gente melhorou muito. Eles eram desprivilegiados e não viviam em boas condições. Essa mudança os ajudou muito. O que me assusta é que muitos dizem que desejam permanecer aqui no Texas.’
Apesar de tudo, a revista Veja não viu preconceito. Afirma o semanário:
‘A cor foi o fator que agravou a catástrofe? Na verdade, sim, mas não por racismo. Os negros predominavam entre as pessoas que se amontoavam em abrigos improvisados na cidade alagada por uma conjunção de fatores demográficos e sociais. Dois terços dos habitantes de Nova Orleans são negros, uma proporção cinco vezes maior do que a média americana. Um terço deles vive abaixo da linha de pobreza. Sem dinheiro ou carro para fugir da cidade, formaram o grosso do contingente que acabou ficando em Nova Orleans para esperar a passagem do Katrina‘.
E para provar que o problema não foi preconceito, faz o possível para limpar a barra de Bush:
‘O prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, um democrata negro, também teve sua parcela de responsabilidade, porque foi incapaz de organizar um plano para evacuar totalmente a cidade antes da chegada do furacão. Em um dos bairros mais pobres, o Orleans Parish, onde mais de 100 000 pessoas não tinham como fugir quando se anunciou a tempestade, foram encontradas centenas de ônibus municipais boiando nas águas lamacentas da inundação, indicando que a prefeitura poderia, sim, ter afastado os moradores da ameaça natural. Ninguém disse que a falha se deveu ao racismo.’
A Veja não foi citada, mas bem que poderia estar no comentário de Osmar Freitas Jr, publicado na IstoÉ:
‘Os políticos televangelistas e a mídia americana adotaram um chavão para explicar o desastre provocado pelo furacão Katrina. Repetem em coro que foi uma tragédia de proporções bíblicas. A frase busca eximir responsabilidades políticas, já que, se está na Bíblia, é coisa de Deus. De quebra, pretendem culpar os supostos pecados de New Orleans – uma Sodoma americana, na opinião dos fanáticos religiosos’.
Choro escondido
A imprensa falou dos problemas de Bush, das perdas econômicas e dos trabalhos de resgate. Falou do desastre natural, citou pessoas que denunciavam o descaso com a manutenção das bombas que protegiam a cidade e mostrou, repetidamente, as visitas das autoridades federais aos locais atingidos. Preconceito só foi mencionado mesmo pelo prefeito, e assim mesmo porque foi entrevistado por uma rádio local, que, de forma quase milagrosa, conseguiu se manter no ar.
Mas enquanto a imprensa norte-americana mostrava o presidente Bush e sua secretária de Estado Condoleezza Rice fazendo cena, uma outra mulher negra, que saiu da pobreza para o seleto grupo dos bilionários americanos, deu um show particular. Oprah Winfrey pegou a equipe de seu programa de TV, prendeu o cabelo para trás, fez uma maquilagem discreta, calçou botas e foi a Nova Orleans filmar, conversar com os desabrigados e dar voz ao prefeito da cidade.
Ao contrário dos homens públicos brasileiros, que não podem ver uma câmera e já soltam as lágrimas, o prefeito, quando sentiu que ia chorar (de pura raiva, dava para perceber), deixou Oprah falando sozinha. Voltou depois, recomposto e continuou seu discurso, uma denúncia direta ao preconceito que ainda é uma triste realidade no país:
‘Queria ver como o governo agiria se um furacão atingisse Los Angeles, Miami ou Chigago. Até entendo por que as pessoas tiveram um comportamento quase animalesco quando ficaram presas no Superdome. Perderam tudo, ficaram sem comida e sem água, desamparadas pelo governo’.
Mudança de endereço
Várias vezes durante a matéria (que rendeu dois dias de programa e é chamada com destaque no site), Oprah borrou a maquilagem com suas lágrimas. Várias vezes manifestou a indignação e disse aos fãs, alojados no Superdome do Texas, que tudo vai dar certo. E encerrou o programa com uma reclamação contra a imprensa, que insiste em chamar os desabrigados de refugiados: ‘Eles não são refugiados. São cidadãos americanos’.
A rainha dos talk-shows americanos pode até ser acusada de estar fazendo marketing pessoal. Mas não pode ser acusada de ter falta de senso jornalístico.
Seguindo a estrutura habitual do programa e dona de um inegável carisma, a apresentadora de TV fez o que os repórteres não conseguiram: mostrou a realidade em que os desabrigados viveram durante quatro dias presos no estádio. Falou da sujeira, colocou o médico de sua equipe (que normalmente faz cirurgias plásticas nas escolhidas pela produção do show) no aeroporto, mostrando que as pessoas eram levadas para o necrotério ainda vivas, ‘para morrer em paz’.
E mostrou, principalmente, que o jornalismo talvez esteja mudando definitivamente de endereço: em vez dos jornais, ganhou a televisão e, na televisão, ganhou o espaço dos shows onde se misturam notícia e tragédia humana. Uma combinação em geral de mau gosto mas que, neste caso, talvez tenha sido o único veículo para pobres, negros e idosos de uma cidade inundada. Uma cidade que revelou a todos nós que os prejuízos causados por um furacão de categoria 5 podem ser menores até do que os causados pelo preconceito.
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Jornalista