Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um conflito interessante – II

Como desdobramento das questões abordadas no artigo anterior [OI, edição 453], cabe, desta feita, centrar o foco em outras áreas de tensão nas quais a parceria entre cultura e tecnologias da informação cria um impasse em outras três: a política, a economia e a legislação. Tudo indica que, dada a necessidade de algum criterioso exame para o enfoque do tema, venha a existir uma futura terceira edição.

É inegável a constatação do quanto o conhecimento está, na realidade presente, em disponibilidade para os mais diversos segmentos societários. Se o fato é, em si, auspicioso, não deixa de ser preocupante a rede de conflitos que o mesmo fato tem acarretado.

O conflito se materializa, principalmente, quanto às assimetrias culturais e educacionais brasileiras, no traçado de políticas de governo (nos três níveis: federal, estadual e municipal). É louvável e saudável que a esfera governamental proponha programas de inclusão de setores populacionais desprotegidos no acesso a todos os estágios educacionais. Todavia, o que não pode existir é, contraditoriamente, uma medida de perfil inclusivo somada a outra de caráter excludente. Refiro-me ao programa de inclusão de estudantes pobres da rede pública em universidades. Em que ponto, pois, o benefício meritório de aplausos esbarra em limitações concebidas na contramão?

O disfarce da ‘política inclusiva’

No mesmo período em que se verifica o fluxo de estudantes carentes para o topo da formação intelectual (nível superior), surge a proibição de, nas universidades, se reproduzirem textos indispensáveis à condução crítico-reflexiva dos cursos ministrados. Daí, deduz-se a articulação perversa: enquanto, em gerações anteriores, estudantes de classe média se fartaram de apoio de fontes xerocopiadas, hoje, estudantes carentes se vêem tolhidos do mesmo recurso, sob pena de infração legal que pode punir instituições e docentes. Em outros termos, assegura-se-lhes a vaga, posibilita-se-lhes o ingresso e inviabiliza-se-lhes o acesso às fontes do saber que vão muito além das aulas. No que não dispõem de recursos financeiros para a aquisição dos livros – e também não podem, por custo bem menor, adquirir cópias –, tais estudantes ficam à margem. Quem resolve essa questão? As bibliotecas não atendem à demanda. A internet não contém tudo que é necessário. E ainda assim: quem lerá um livro de teoria numa tela? E se imprimir, quem pagará o cartucho, cujo preço é mais caro que o livro? Sem tal equacionamento e bom senso, o estudante pobre permanecerá estigmatizado e deficitário na sua formação.

A condição de docente, nas áreas em que atuo, e de autor de diversas publicações, me legitima a reconhecer que tal deficiência nenhum suporte tecnológico suprirá. Ao contrário, acentuará deformações, sob o disfarce de uma ‘política inclusiva’. A verdadeira democracia não pode provir de ‘ferramentas’, e sim da experiência subjetiva do ser com o conhecimento, diferente de ‘conteúdos’ programáticos e programados.

‘Coragem’, e não ‘vontade’

É certo que o complexo editorial não deva ser penalizado na subtração de ganhos decorrentes do capital investido. Igualmente, autores têm o direito a receberem o minguado percentual (10% sobre o preço de capa) que lhes é destinado (e sem nenhum apoio comprobatório). Cabe, pois, a proposição de um atalho capaz de fixar uma taxa de recolhimento de todos os fabricantes de máquinas de reprodução. O montante seria redistribuído para editoras e autores, como mínima compensação por perdas. Por sua vez, nas universidades, apenas estudantes carentes, mediante apresentação de documento com foto, teriam direito à reprodução. É exeqüível? Parece-me que sim. É uma proposta. Não excluo a possibilidade de outras (e até melhores) a serem pensadas. Aqui, faço a modesta contribuição. Uma coisa, porém, é certa: como está, não pode perdurar. Peço, inclusive, que outros articulistas e leitores-comentaristas dediquem parte de suas preocupações para essa questão.

Sem querer ensinar prática política a quem quer que seja, entendo que é assim que se faz política e se respeita a democracia. Gastam-se muita retórica e demasiada energia intelectiva para a fervorosa defesa de ‘x’ e, outro tanto, para a condenação raivosa de ‘y’, e vice-versa, cujo resultado é nenhum. Nesse embate neurótico, ninguém altera a percepção de ninguém. O país padece – e há muito tempo – de doença crônica originada da falta de políticas propositivas. Estas não derivam de ‘cérebros apaixonados’, tampouco de ‘mentes unilaterais’.

Lá pelos idos dos iniciais anos da década de 80 surgiu, no contexto discursivo-político, uma expressão que, ao ouvi-la pela primeira vez, já me causou mal-estar. Pior era quando, repetidamente, ela era invocada por alguém: ‘vontade política’. Quem a codificou, por esperteza ou por fragilidade intelectual, teve a sutileza de, em lugar das palavras ‘coragem’ ou ‘ousadia’, empregar ‘vontade’. Bem se sabe que a ‘vontade’ não leva a lugar nenhum. O que se decide mesmo é pelo regime imperativo da ‘coragem’, da ‘ousadia’ e da ‘inventividade’. Se estas faltarem, a orfandade reinará.

Outros caminhos

O que, a rigor, estou propondo é o efetivo exercício da ‘democracia participativa’ cujo significado, no presente texto, quer pontuar o seguinte: que cada cidadão que se qualificou intelectualmente e tem possibilidade de inserção em veículos de difusão ou geradores de opinião ocupe os espaços para propostas em quaisquer campos de atividade. Vamos, ao invés de seguir outro lema ‘engraçado’ que um dia surgiu (‘desobediência civil’), assumir o grau de responsabilidade, entupindo o Legislativo e o Executivo com novas idéias e cobrar deles o porquê do silêncio ante as ofertas. Se não o fizermos, permaneceremos reféns de tecnocratas, deputados despreparados e senadores inócuos. Os poucos que não o são se deixam envolver por temas cuja repercussão na qualidade de vida da população é nenhuma. O perigo crescente é o descrédito do cidadão comum por quem diz representá-lo.

A proposta que formulei em parágrafos anteriores poderia estar no bojo de uma reforma tributária. Todavia, sai governo e entra governo e a reforma não tem vez. De que adianta um governo ter base majoritária se ela não se torna instrumento para efetivas transformações? Por outro lado, se, em lugar de ‘vontade política’, houver alguma dose de ‘coragem’, o governo, pelo instrumento do qual tanto faz (como outros fizeram) uso – refiro-me à edição de MP – não encaminha uma, taxando os setores que mais lucram no país e reverter a taxação para saúde e educação? Ilustremos a questão: haverá alguém, com razoável formação, que desconheça quais são os setores de maior aferição de lucros? Rede bancária, setor de informática e de tecnologias agregadas, indústria farmacêutica, empresas de telefonia móvel. Podemos ficar com essas. Por que o governo opta pela simples prorrogação da CPMF, algo que era tenazmente combatido pelos próprios atuais dirigentes, e não abre novos caminhos, libertando o cidadão comum que por tudo paga neste país? Será preguiça? Será falta de imaginação? Será política conservadora em nome da qual o ideal é a não-confrontação? Deixo claro que tais perguntas são igualmente válidas para todos os governos anteriores.

Recursos para maior arrecadação

Ao propor o elenco dos setores mais lucrativos do país, a escolha não ignorou implicações éticas. No tocante à rede bancária, não há muito que pensar: é uma atividade que vive da relação capital + capital = lucro (não passa pela produção). No que diz respeito ao setor de informática, a simples razão de ele ter sido o responsável pela redefinição de todo o acesso a informações e conhecimento (para bem e para mal). No âmbito da indústria farmacêutica, a obviedade de seus lucros decorrerem, na sua maior parte, das carências da maior parte da população brasileira. Quanto às empresas de telefonia, as cenas do cotidiano refletem o quadro: cada vez mais usuários da telefonia móvel gastam impulsos para ‘falações’ absolutamente inúteis. Quem, num campus universitário, observar o comportamento expressivo de estudantes, atendendo ou ligando, ficará impressionado com a freqüência. Na maioria dos casos, são contatos inteiramente desnecessários que, por deseducação dos usuários, são convertidos em impulsos geradores, ao final do mês, de lucros e de gastos. O que gasta, mensalmente, um usuário de telefonia móvel (excluídos aqueles cujo uso é profissional) é a quantia que ele poderia destinar à compra de livros, ingresso para cinema, para teatro e outros afins. Não é, portanto, nenhum ato imoral que as companhias de telefonia móvel repassem, para o governo, taxas que seriam reinvestidas na aquisição de bens verdadeiramente culturais a que estudantes carentes teriam acesso.

A declaração do presidente Lula, presente nos principais jornais do país, na edição de 06/10/2007, ‘Lula defende aumento de arrecadação’ (Folha de S. Paulo) está correta. É óbvio que, num país com tantas vicissitudes, não se almeje ‘aumento de arrecadação’. A questão fulcral está em outra direção, i.e., de quem extrair recursos para maior arrecadação? Nesse ponto, as palavras ‘vontade’ e ‘coragem’ marcam a diferença. Nessa distinção semântica reside o drama narrativo de nossa história.

A história da civilização é sábia

Enfim, o propósito aqui não é o de tentar enfraquecer quem está. Ao contrário, o desejo é, como cidadão do país, colaborar para redes de fortalecimento. Para tanto, conclamo a que usemos a inteligência ativa na direção de idéias propositivas para os impasses postos, deixando de lado fixações ideológicas das quais nada se colhe fora do horizonte das visões perturbadas. Se me cabe o direito a um trocadilho, o prato servido pelo caso ‘Renam’, na minha culinária quer dizer ‘Re-não’. Como pode um caso com os ingredientes expostos perdurar tanto? Por outro lado, como rapidamente foram contornados escândalos atinentes ao Proer, Banco Econômico, Banco Santos, Marka, Banestado e…? Estes diziam respeito a governo anterior. Assim, sempre que posso, no campo das evidências, pauto minha neutralidade possível, com o devido esclarecimento de que também não sou seguidor do PSOL.

A questão à qual sou fiel é o investimento na inteligência brasileira. É ela, e não outra, que nos permitirá aceleração produtiva ou estagnação inercial. A raiz profunda dessa força jamais estará numa ‘ferramenta’ que, apesar de ‘tecnológica’ não passa de mais um ‘instrumento’. A história da civilização é sábia nas suas indiciações: iniciamos pela ‘Idade da Pedra’, passamos para a ‘Idade do Bronze’. Em seguida, descobrimos a ‘Idade do Ferro’. O estágio seguinte saiu da ‘concretude tátil’ para a eficiência intangível: a ‘Idade da Energia’. Nela estamos até hoje. Será que, na sucessão de tais superações, realmente com elas aprendemos algo de transformador? No próximo artigo, abordarei outras questões relativas ao binômio ‘cultura e tecnologia’.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha, Rio de Janeiro