Na seqüência das reflexões sobre o presente tema, fechando as angulações críticas que ocuparam as duas versões anteriores [OI – artigos nas edições 453 e 454], resta, agora, a tentativa de se compreender um novo conflito decorrente de embaraços trazidos pelas novas tecnologias em relação ao ordenamento jurídico cujas leis remetem a um mundo no qual tais recursos inexistiam. Por outra, será que algumas ‘ferramentas’ até já existiam e, nesse caso, havia o fato, mas não existia a questão? Cabe, pois, a indagação das razões.
Tecnologia, cultura e legislação
Em tempos recentes, ronda um tema que, com bastante ênfase, a mídia tem abordado. Trata-se da defesa dos direitos à propriedade autoral e industrial em cujo pano de fundo se situa o ‘fantasma’ da ‘pirataria’. O exemplo mais recente, por esses recantos tropicais, foi o ‘vazamento’ do filme Tropa de Elite pelo YouTube, afora tantos outros casos que o precederam e outros tantos que haverão de sucedê-lo. Antes de, sobre o caso recente, firmar considerações, sugiro retroceder no tempo.
Indo à época da invenção do gravador, alguém se lembra de autuações ou debates por conta de usuários que, por comprarem legalmente um gravador, fossem alvo de acusações por ‘roubo’, ao gravarem músicas diretamente das emissoras de rádio ou de discos? Com o advento do aparelho (3 em 1), quem o obtivesse sintonizava uma emissora de rádio. Nela, gravava, imediatamente, a música recém-lançada pelo artista. Outro ponto, porém, merece análise. Outrora, a música em si não supria a riqueza do conjunto que envolvia a capa do disco, o encarte com as letras e, por vezes, texto de crítica, além de o disco, nos grandes compositores-intérpretes, ter um certo ‘enredo’. No formato atual, tudo ficou pequeno. As capas dos CDs perderam impacto estético, os encartes são horríveis pela pequenez do padrão gráfico das letras que ainda colidem com um fundo cruzado por cores e formas. Nesse sentido, a tecnologia retirou densidade estética e diminuiu intensidade artística. Fica a coisa em si.
Posteriormente, nos tempos do vídeo, filmes e programas de TV passaram a ser copiados e multiplicados. O tema da ‘pirataria’ não ocupava espaços na mídia, a não ser quando a ‘reprodução’ objetivava ganhos irregulares, ou seja, gravar uma fita e reproduzi-la para fins de comercialização ilegal. Eis que a tecnologia avançou e tornou disponível, na residência de qualquer usuário, a possibilidade de ter a posse de produtos (livros, músicas, filmes, documentários, entrevistas etc) e, em questão de minutos, disponibilizá-los em escala mundial. Quem, juridicamente, deve pagar a conta?
As matérias midiáticas – até pelas expressivas verbas publicitárias que recebem da indústria tecnológica – tendem a acusar os usuários que apenas, em suas próprias residências, sem nenhuma intenção de ‘comercialização’, tomam posse. Por que a mídia não redireciona a cobrança para a rede industrial, responsável pela geração das ‘ferramentas’ que induzem à reprodução? Quem repassou a invenção da Internet para a população mundial? Que cérebro concebeu o YouTube? Que indústrias ofereceram para o mercado gravadores, vídeos, DVDs, CDs, I-Pod, MP3? Será o cidadão comum que repassa para um amigo, ou um professor que, para fins educacionais, exibe o produto ‘pirateado’, os algozes dos novos tempos? Sinto muito. A história está desvirtuada. Como se diz, popularmente, ‘o buraco é mais embaixo’.
Conflitos do capitalismo
O que, a rigor, ocorre – e sobre tal questão nada se diz – é uma contradição interna na própria lógica dos interesses capitalistas. Dois campos se encontram em rotas de colisão. De um lado, há o setor produtor de bens culturais; de outro, há o setor de tecnologia da informação. Uma se beneficia pelas invenções da outra, por conta de novos recursos que aceleram a produção e conferem aos bens culturais melhor padrão de qualidade. Por outro lado, o mesmo setor gerador de benefícios não tem como controlar a expansão gratuita desses mesmos bens culturais gerados pelo outro setor. Assim, está posto o impasse. O capitalismo sempre soube extrair apetitosas receitas de tudo que grandes artistas, pensadores e cientistas criaram, conceberam ou inventaram. O dado novo é que a tecnologia, fruto do capitalismo avançado, embaralhou o esquema lucrativo que, ao longo de séculos, vigorou, gerando choque de interesses.
Um novo cenário
Não é necessário recorrer a escritos de Marx, Weber, Hobsbawn ou de Walernstein para se saber que, na essência do capitalismo, há a competição entre empresas de mesmo setor e áreas de colisão entre empresas de setores diferentes. Em ambas as situações, a tensão que, se acirrada, migra para a violência, é a força regente da logística do capitalismo. Assim, no estágio avançado do capitalismo, a inteligência voltada para a tecnologia tem provocado um distúrbio num campo em que, ao longo de um século, se habituou a multiplicar milhões de dólares com um quadro, um disco, edições (e reedições) de obras e outros.
No novo cenário, sob a regência da tecnologia que bem soube incorporar a antiga eficácia da técnica, promoveu-se um desencontro de expectativas: se, por um lado, a tecnologia escraviza, por outro, ela liberta. Quem vive o drama é a esfera do capital referente a setores que se sentem atingidos quanto à falta de proteção autoral, afetando suas receitas. Que se ajustem as partes em conflito. Quem não pode pagar a conta – insisto – é o cidadão que, na sua residência, tem à disposição um programa no interior de uma máquina adquirida legalmente e que lhe possibilita apropriações. Como pode o indivíduo, sem sair de casa, ser acusado de roubo? Terá ele roubado de si mesmo? Incrível. Ele, simplesmente, acessa a rede e nela encontra o ‘objeto’. Como se configura, nesses termos, o delito?
Conceitos no lugar
Nas últimas semanas, o noticiário do país se viu ocupado com matérias referentes a duas ‘tropas’. Uma tropa alo(u)cada na área política (a tropa de choque do senador Renan); outra tropa tresloucada nas telas de cinema (o filme Tropa de Elite). A primeira, com o atraso de meses, já entregou os pontos. A segunda, com a paciência devida, ainda rende entrevistas, discussões e mais sei quanto. Ocupar-me-ei, dada a natureza temática do artigo, apenas da segunda.
O que, efetivamente, se tem a dizer sobre o filme Tropa de Elite? Não bastassem matérias em profusão, afora a questão (marqueteira) da ‘pirataria’, o Roda Viva e o Observatório da Imprensa, ambos na dobradinha televisiva (TV Cultura/TVE), cederam seus horários para a ‘grande’ questão. O que, efetivamente, o público lucrou em expansão crítica? Honestamente, como filme, em nada a linguagem cinematográfica se viu alçada a uma inovação estética. Como reprodução da realidade, nada, figurativamente, pode ser mais impactante do que o horror da própria realidade. Se nada do que há no filme se constitui em informação nova, seja como estética, seja como testemunho documental, então o produto nada tem a oferecer. O fato é que, já há muito tempo, está havendo uma epidemia de produção audiovisual cuja invenção é zero. Outros, mais ingênuos que críticos, saem classificando esses produtos forjados no ‘naturalismo saturado’ de ‘documento-ficção’ ou de ‘ficção documental’. Pura retórica atrasada e equivocada. Em nome da ‘hibridização’, neutralizam-se as diferenças fundamentais e substanciais dos dois campos da codificação: a ficcional e a documental.
Para rebater conceitos contrários, logo emerge o elenco de vozes para invocar que o brasileiro gosta (e precisa) de se ver na tela. Sim, é óbvio. Tal percepção se estende a qualquer outra sociedade. O italiano, o francês, o alemão e todos os demais gostam de se ver na tela. A diferença é que a tela (entenda-se cinema) é para o espectador se sentir provocado por algo que lhe diz respeito e para o qual ainda não havia destinado o olhar capaz de apreender aquilo que era de seu desconhecimento. Tropa de Elite oferece, para o espectador, o quê? Haverá algo no filme (?) que já não exista na consciência de cada um? Não, dirão as vozes entusiasmadas, o propósito é o de mobilizar a sociedade brasileira para uma transformação de suas instituições. Sim, aguardemos. Em todos os casos anteriores, nada aconteceu. Será desta vez? Já antecipo, de minha parte, que não. Bem, mas o filme é tecnicamente muito bom. O elenco está perfeito. Pois é. Que pena! Domina-se a técnica. Há excelentes atores e atrizes. Todavia, nada das virtudes fará com que o ‘produto’ não seja mais um ‘cometa’ que, em alta velocidade, passa e dele nenhum rastro ficará. Adoraria reconhecer que estou errado. Desconfio, porém, que não.
O perfil dominante da ‘incultura brasileira’ insiste em acreditar que o desconhecimento da realidade pode ser ‘curado’ pela codificação audiovisual. Essa aposta já reporta há décadas. Por mais que os resultados tenham sido deploráveis, o investimento continua. Um exemplo ainda mais recente? Vamos lá. O programa da TV Globo Fantástico (que de ‘fantástico’ nada tem) pôs, na edição de 14/10, pela décima vez, uma matéria a respeito da automedicação. Mesmo o telespectador desmemoriado deve lembrar-se que o teor da matéria não é original. E daí? Alguma transformação se deu na realidade nacional, desde a primeira vez? Outra: qual foi a mudança ocorrida, na sociedade brasileira, por conta do filme, ainda nos anos 80, Pixote? Anos depois, havia a chacina da Candelária. O mesmo diretor de Tropa de Elite já fizera o documentário sobre a ‘tragédia’ do ônibus-seqüestro 174. E daí? Houve algum avanço? O saldo para o cidadão-espectador de Tropa de Elite é um só: ele sai do cinema (ou do YouTube) com a sensação de que deve ter pavor da bandidagem e horror da polícia. Por favor, chega! Então, vamos para outra questão.
Kant, Machado, Kafka e os direitos autorais
A presente reflexão me conduz a pensar em algo: Kant, ao entregar-se intensamente à construção de sua magnânima obra filosófica, estaria preocupado com ‘direitos autorais’? Será que o magistral Machado de Assis e o insubmisso jovem Kafka, ao criarem suas inovadoras obras literárias, tinham, no horizonte, a preocupação com a preservação de seus ganhos, em função de leitores que, eventualmente, pudessem chegar aos seus escritos por caminhos diversos? Sinto muito. É possível que os ‘herdeiros’ dos talentosos tenham movido alguma ação (e sempre o fazem). Os artistas, os filósofos e os cientistas, quando realmente o são, não. Fico a imaginar Glauber Rocha, escrevendo de cueca (ou em plena nudez), a ‘engenharia ficcional’ de Terra em Transe, e pensando na ‘receita’ do filme. Se assim procedesse, Glauber teria feito o filme Terra e transa. Felizmente, Glauber optou pela primeira e, a propósito, cabe aqui o registro da belíssima interpretação que Paulo Autran, falecido no último dia 12/10, emprestou à personagem de Porfírio Dias, no filme, já citado Terra em Transe.
O que, a rigor, pretendo acentuar é muito simples: se o conhecimento até aqui foi capaz de, antes pela técnica, e, agora, pela tecnologia, integrar, progressivamente, o acesso a fontes de extração de conteúdos e de obras densas com que a consciência planetária possa elevar seus níveis de compreensão a respeito dos problemas do mundo e dos enigmas a cercarem a existência, ótimo! Que todos possam realizar a experiência subjetiva e, por meio dela, venham a aprimorar o curso da civilização. O resto é um ‘ti-ti-ti’ de ressentidos que caíram na armadilha burocrática com a qual a rede do capital se tenta proteger. Com base na espiral do avanço tecnológico, não sei por quanto tempo o debate resistirá. O capitalismo, além de enfrentar futuros e radicais problemas, em função das transformações da natureza, ainda terá de reformular seus preceitos, em razão das inovações trazidas pela tecnologia. Em algum momento do futuro, o mundo, como o conhecemos, não será uma paisagem familiar aos nossos olhares.
Bem, a série de três artigos em torno da questão temática sobre ‘cultura e tecnologia’ teve o intuito de despertar outras angulações críticas que a mídia ‘padronizada’ parece ignorar. Deste modo, peço que leitores interessados na qualificação progressiva da massa crítica brasileira não reduzam os questionamentos a pressupostos partidarizados, sob pena de ficar exposta, em lentes de aumento, a minoridade intelectual da nação. É só.
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ).