Ao repassar a série de três artigos a respeito do tema (para bem, ou para mal), eis que um incômodo, originado de uma certa sensação de incompletude, direcionou-me a uma quarta versão. Até onde diagnostiquei (corretamente, ou não) a insatisfação quanto ao que ainda pudesse restar como exploração crítico-reflexiva em torno do conflito entre cultura e tecnologia, constatei a necessidade de melhor articular as relações tanto associativas quanto disjuntivas, no tocante ao trinômio tecnologia-democracia-mídia. Sobre tal questão, portanto, procurarei problematizar.
O impasse do tempo
A técnica é movimento. A tecnologia é aceleração. A passagem de um estado a outro imprimiu, em todas as atividades humanas, uma nova dinâmica. Com esta, alterou-se o sentido da ‘duração’, afetando intensamente o modo subjetivo de se lidar com a própria vida, pelo menos para aqueles que não atentaram quanto ao que passou a estar em jogo. Na nova realidade da ‘aceleração’, tema bastante afeito às reflexões teóricas de Paul Virilio, ao tempo da circulação veloz do acúmulo de informações, não corresponde o tempo de assimilação e, com isto, igualmente se enfraquece a capacidade de ajuizamento. Daí seja provável que, à sofisticação tecnológica, se siga a fragilização do pensar, dada a assimetria das demandas. O pensar exige tempo, enquanto a tecnologia propõe rapidez. O descompasso finda por incidir na política, na criação, na produção das informações, na apuração dos fatos e assim por diante.
É interessante, porém, experimentar a vida com o que ela contém de paradoxal. O paradoxo tende a criar um certo espanto do ser perante a vida. Desse entrechoque podem surgir situações renovadas. Afora outros embates, oriundos do paradoxo, destaco o enfrentamento da democracia com a tecnologia. Se, por um lado, a tecnologia democratiza o conhecimento, de outro, ela comprime a prática política da democracia, já que o tempo exigido pela democracia para tomada de decisões se mostra muito lento para as urgências ditadas por um cotidiano cada vez mais acelerado (e, outras vezes, celerado).
A prática democrática obriga reuniões, discussões, negociações. Como administrar o tempo da espera, sem permitir, nos segmentos demandantes, a sensação da inércia? Talvez, num horizonte mais próximo ou mais distante, a força da tecnologia venha a redefinir o sentido e a prática da democracia (para bem ou para mal). A presença cada vez mais acentuada da tecnologia na política, bem como no sistema judiciário, ditará o processo de desburocratização do Estado, em todas as suas esferas. A transformação que hoje já é visível no campo da comunicação, principalmente na atividade jornalística, contaminará outros tantos setores da vida pública e privada. A transformação é tão excitante quanto preocupante.
A geração educada no novo formato das ‘ferramentas eletrônicas’ demonstra graves sinais de impaciência, incapacidade de concentração, necessidade impulsiva em responder rapidamente ao desafio proposto por elaborações do pensamento. A esses traços comportamentais e mentais, soma-se o desprezo pela dúvida, em favor da adesão a rápidas ‘verdades’ e ‘convicções’. Não é preciso dizer que, na grande maioria, essa ‘certeza apressada’ significa percepção equivocada. Poderemos conter e reverter tais tendências? A sociedade não parece muito tentada a discutir a questão, a despeito de efeitos se multiplicarem no cotidiano. Há, inclusive, o perigo das distorções, o que é verificável em pessoas que confundem a rapidez de decisões com inteligência. Decidir rapidamente por uma solução frente a um problema de ordem operacional é uma coisa. Decidir velozmente sobre o que Hegel articulou em ‘A fenomenologia do espírito’ é outra bem diferente. O que se mostra eficiente para situações técnicas revela-se incompatível para procedimentos cognitivos que requerem esforço analítico, crítico, exegético ou hermenêutico.
Outra vez, reaparece, nessa série de artigo, a questão do ingresso progressivo da tecnologia no sistema educacional. Falta sensibilidade aos órgãos governamentais (e com repercussão imediata na esfera privada) quanto à efetiva contribuição que as ‘ferramentas tecnológicas’ podem oferecer. Elas são fantásticas para um certo campo e igualmente nefastas para outro. Se a sociedade embarcar na generalização, em nome da aceleração, da eficiência estatística e da ‘política de resultados’, teremos alimentado o poder destrutivo do monstro.
O homem-fio
Uma das mais perceptíveis deformações, em tempo de consumo de tecnologia, diz respeito ao comportamento de boa parte da população. A facilidade com que podemos circular pelos mais diferentes lugares com a companhia de ‘aparelhos’ tem gerado abusos crescentes. Há pessoas (e cada vez mais em maior número) que passam expressiva parte do dia ‘plugados’. Conversam, atravessam as ruas, assistem às aulas (e sabe-se lá mais o quê) com fios pelo corpo e nos ouvidos. Uns se revelam ‘viciados’ em música (sem entrar no mérito de seu gênero); outros se inquietam no uso repetitivo de buscarem alguma informação ou mensagem. Comportamentos dessa ordem (ou desordem) traduzem a incapacidade de vivenciarem uma dimensão subjetivo-pensante, como se, na vida, nada haja para meritória e necessária reflexão.
A trivialização da tecnologia parece conduzir à banalização dos conteúdos, do conhecimento e, por fim, da própria vida. É bom estarmos atentos para as mutações que estão em curso. Se providências não forem tomadas no sentido de se criarem restrições, perder-se-á a oportunidade de, em tempo hábil, promover-se a tentativa de reversibilidade do quadro. É hora de começarmos a pensar que tecnologia também é droga e, como tal, ‘vicia’. Vamos encarar, ou optaremos pela atitude leniente, típica de quem não quer atritos? A vida, além de ser travessia prazerosa, é também trajetória de conflitos. Uma não se deve desgarrar de outra.
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)