Eram 21 horas de 30 de abril de 1981 quando uma bomba explodiu num dos carros que estava no estacionamento do pavilhão Riocentro, no Rio de Janeiro. O sargento Guilherme Pereira do Rosário, atingido em cheio, morreu na hora. O capitão Wilson Dias Machado, que estava ao lado dele, ficou gravemente ferido. Os dois militares pertenciam ao DOI-Codi, o mais temido órgão da repressão militar. Eles planejavam atirar a bomba, mas ela detonou casualmente quando a manejavam.
Se tivessem conseguido realizar o que queriam, teriam causado o maior ato terrorista do período de “abertura”, através do qual o regime militar pretendia devolver a democracia ao Brasil de forma “lenta, gradual e progressiva”, sem maiores traumas. Provavelmente a explosão causaria muitos danos entre os milhares de pessoas que assistiam ao espetáculo em comemoração ao dia do trabalhador.
Alguns analistas chegaram a sugerir que, consumada, a explosão resultaria no maior atentado terrorista urbano da história do Brasil. O general Gustavo Moraes Rego Reis, um dos principais auxiliares do presidente Ernesto Geisel, não hesitou em definir o episódio como verdadeiro ato terrorista.
Uma segunda explosão ocorreu a alguns quilômetros de distância, na estação de fornecimento de energia ao Riocentro. A bomba explodiu no pátio, não atingindo o gerador. A energia do pavilhão não foi interrompida. O show prosseguiu normalmente.
Apesar da flagrante evidência de que os dois militares é que praticavam a agressão, a versão oficial foi de que eles foram vítimas de um atentado terrorista: alguém passara ao lado do automóvel em que eles estavam e atirara uma bomba para o seu interior, surpreendendo o sargento e o capitão, que se recuperou, foi promovido ao posto de coronel e passou para a reserva sem ser perturbado por qualquer punição. Continua incólume até hoje.
Houve um esforço geral dentro do governo para encobrir o episódio. Poucos se atreveram a contestar a versão oficial, menos ainda no momento imediato à divulgação do atentado. Exceto pelo comandante da principal unidade do Exército sediada em Belém. O tenente-coronel Nivaldo Mello de Oliveira Dias, depois de se informar sobre o acontecimento, decidiu reagir. Foi preso, destituído do cargo e obrigado a passar para a reserva. Voltou para Recife, sua terra natal, onde passou a se dedicar ao plantão telefônico de atendimento a pessoas desesperadas, principalmente as que tentam se suicidar.
Acompanhei o oficial desde o primeiro momento depois do Riocentro. Andávamos pela madrugada no carro dele para conversarmos. Minhas matérias, publicadas em O Estado de S. Paulo e A Província do Pará, foram as únicas sobre esse acontecimento. Mas um texto meu permaneceu inédito. Foi um relatório que escrevi de bate-pronto, em resposta a um telex através do qual Raimundo Rodrigues Pereira me pedia uma narrativa, em cima da hora, para o jornal alternativo Movimento, que estava fechando sua edição daquela semana. Reproduzo esse relato como um documento sobre um fato que não consta das histórias escritas sobre esse atentado. Por ser um texto extenso, ele será dividido em duas partes. A primeira vem a seguir.
O tenente-coronel Nivaldo Mello de Oliveira Dias, 45 anos, pernambucano, há 30 no Exército, ficou marginalizado quando chegou a Belém, em 1978. Foi transferido punitivamente de Recife por causa do seu envolvimento na campanha [do general] Euler Bentes Monteiro. O militar, aliás, nega esse envolvimento: ele apenas protestou contra a prisão do coronel Tarcísio e manifestou seu apoio às ideias do candidato alternativo ao Figueiredo [que se tornaria o último general na presidência da república do regime militar]. Depois de cumprir 15 dias de prisão, foi designado para o serviço de recrutamento, função burocrática, distanciada da tropa.
Em setembro de 1970 recebeu um questionário do Ministério do Exército para preencher. Era para dizer, por ordem de preferência, que funções de comando de tropa queria exercer, por necessidade de serviço (já que um tenente-coronel não pode ficar muito tempo sem comando). Enumerou várias alternativas, a começar por Recife. Era o 19º tenente-coronel no almanaque do Exército Foram nomeados 30, ele não. Verificou que que a entrega dos comandos fora acertada previamente ao envio dos questionários, cujo preenchimento era mera formalidade, sem valor real, Protestou junto ao seu chefe imediato, o comandante da 8ª Região Militar. Indeferido, fez novo protesto ao Comandante Militar da Amazônia. Recebeu seis dias de prisão. Recorreu ao ministro, que determinou sentença adicional de prisão. Cumpriu integralmente a pena.
O coronel acumulava então duas penas de prisão em Belém e continuava indo todos os dias ao seu serviço burocrático no QG. Dois oficiais com os quais conversei me disseram que, embora cumprindo uma função sem qualquer importância, o militar vinha ganhando prestígio entre a oficialidade e mesmo junto à tropa pelo seu comportamento, sua assiduidade e dedicação ao trabalho. É um contumaz Caxias. Mas não ganhou apenas prestígio: atraiu também inveja, segundo sua esposa.
Em dezembro do ano passado [1980] o coronel soube que seria nomeado comandante do 2º Batalhão de Infantaria de Selva, a principal unidade de tropa na jurisdição da 8ª RM. O próprio comandante da região, general Luis Ururahy Neto, teria feito a indicação ao general Walter Pires [ministro do Exército], que a aprovara. O general Waltencir [Costa, substituto na 8ª RM], na nota de ontem, disse que a nomeação foi feita “com evidente propósito de propiciar uma oportunidade de reabilitação ao referido oficial”.
Momento certo
No dia 3 de fevereiro o coronel Nivaldo tomou posse, já sob o comando do general Waltencir, que assumira seu cargo no dia 29 de janeiro. Nessa época, o coronel Nivaldo (cujo nome de guerra é Oliveira Dias) vinha acompanhando com preocupação os atentados e procurava obter informações sobre seus autores. Disse que já tinha fortes suspeitas de que os autores fossem de dentro do próprio Exército, mas, aparentemente, só fazia coleta de informações, sem tomar qualquer atitude.
Até o dia do atentado no Riocentro ele vinha sendo um exemplar chefe de tropa, que não usava mordomias (dispensou o sentinela à porta da residência oficial do comandante do batalhão) e sabe conquistar a simpatia dos subordinados. Formou seu próprio estado-maior, onde se destacavam dois oficiais, que também foram incorporados ao 2º BIS neste ano: o tenente-coronel Júlio César Monte e o capitão Romão, com os quais conversava mais.
Com o atentado ao Riocentro o coronel não teve mais dúvida de que era o pessoal do DOI o responsável pelas explosões. Ele se baseia não só em informações confidenciais que possuiria (mas que, evidentemente, não revelou) como nas suas deduções profissionais. Ele acha que a imprensa erra quando atribui esses atos ao DOI-Codi. O Codi, diz ele, nada tem a ver com a história. Trata-se só do DOI, que é uma unidade do Codi, mas que age autonomamente. E, dentro do DOI, não são todos os que apoiam os atentados. Mesmo aí, trata-se de uma minoria.
O coronel passou, a partir daí, a conversar com todos os oficiais do seu estado-maior e diz que eles chegaram às mesmas conclusões, de que os indícios de autoria estavam tão solidamente estabelecidos que o resultado era um só: foi mesmo gente do Exército e do setor de informações. E que o inquérito instaurado vinha sendo conduzido de forma claudicante, contando com a conivência das autoridades superiores.
No dia 5 de maio. Quando o estado-maior da 9ª RM visitou o quartel do BIS em inspeção administrativa, reunidos todos os oficiais da unidade, o coronel resolveu colocar para fora o que vinha dizendo. O general Waltencir ouviu em silêncio e depois distribuiu uma circular na qual declarava que os oficiais não deviam fazer pré-julgamentos, deveriam aguardar a conclusão do IPM sem se manifestar e deveriam acatar as decisões dos seus superiores, pois eles estavam mesmo empenhados em descobrir a verdade.
A circular foi distribuída a todas as unidades da 8ª RM, mas quando o coronel Luís Antonio Prado Ribeiro, que presidia o IPM, pediu seu afastamento alegando motivos de saúde, o coronel Nivaldo achou que era o momento de agir. Explicou por que:
1 – O oficial não estava doente, o que podia ser comprovado pela simples observação do seu estado físico.
2 – Mesmo que estivesse doente, esse não seria motivo suficiente para o seu afastamento.
3 – Se pediu o afastamento, foi porque estava sendo muito pressionado pelo pessoal de informação do I Exército.
4 – Isso porque já sabia que foram eles que atiraram as bombas.
Detalhe revelador
O coronel diz que qualquer presidente de IPM chega aos criminosos no máximo em três dias e que, depois, a questão é apenas de esclarecer detalhes. Na sua opinião, o oficial já sabia de tudo, mas não teve força para colocar essa certeza nos autos do IPM. Daí o pedido de afastamento, um motivo que só causa repulsa entre os militares, mas que era o único que lhe restava, mesmo que com o sacrifício de sua carreira.
Mas o coronel Nivaldo diz que os que pressionaram o coronel Luís cometeram um erro: ao pretenderem humilhá-lo, como vingança pelo que apurou ou pretendia apurar, acrescentaram à portaria que o excluiu do IPM que os motivos alegados, de saúde, seriam investigados. Esse detalhe desacreditou ainda mais a seriedade do IPM e, segundo Nivaldo, mostraram aos oficiais que as conclusões já estavam pré-definidas e o resultado, se for divulgado, será uma farsa.
Assim, provavelmente no dia 13 de maio, ele redigiu o seu RPI e nele incluiu um tópico no qual apresentava os seus motivos.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)