Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um perfil aristocrático e a companhia dos lentos

As razões do documentário Santiago (em cartaz em São Paulo e no Rio) estar tendo cotações de ‘ótimo’ a ‘excelente’ pela crítica cinematográfica do país são bastante simples. Metade dos jornalistas são amigos do diretor João Moreira Salles e a outra metade gostaria de ser. Algo a ver com ele ser editor da revista cult Piauí, onde todos sonham escrever. Também há a sincera simpatia pelo burguês que desce de seu pedestal para homenagear um serviçal: o filme é sobre o mordomo da família, morto em 94, que tem direito a um balé de mãos de absoluta gratuidade numa série de planos-seqüência em que uma repórter indelicada explora o servilismo de Santiago à exaustão.

Obsessivo, o mordomo copiou compulsivamente relatos de enciclopédias e livros sobre boa parte da aristocracia européia, com ênfase apaixonada numa das mais sanguinárias, os Médici, equívoco comum a autodidatas dedicados à história dos vencedores. Só a passividade borderline de Santiago não o torna passível de internação: sequer cogitou inscrever-se na cultura portenha ou brasileira (seu inconsciente recusou-se até a aprender o idioma da terra que o acolheu). Mas tocava Beethoven, era poliglota e citava Bergman (um prodígio que impressiona o diretor a tal ponto que o anima a repetir o take três vezes para certificar-se de que a platéia apreendeu bem o aforismo do cineasta sueco). É o perfil potencialmente aristocrático de Santiago que encanta o diretor e a crítica (duvido que recebesse com igual entusiasmo o ótimo curta Touro Moreno, do diretor capixaba Juliano Enrico, que narra a decadência de um boxeador de periferia – em exibição no circuito Doc TV da TV Educativa). Tanto quanto Santiago, ele é uma ‘figura’. Só que de outro lugar social, o que não o candidata a cult.

Sim, com narração em off semi-melosa e compassiva, temos aqui uma metalinguagem, mas que serve mais para relatar episódios da família do documentarista do que para expor as dificuldades de realização do filme, o que a torna nula como proposta estética. Quando Santiago ameaça falar de seu ‘lado maldito’, é cortado bruscamente. Quando perguntado sobre as festas que varavam a madrugada, deixa finalmente escapar um ruído naquele seu papel de escravo feliz: ‘E eu tinha de agüentar’, diz, sorrindo baixinho, com medo de contrariar.

O ponto alto do filme é a confissão do narrador de que não há closes talvez porque nunca tenha deixado de ser o filho do patrão, e Santiago, o empregado.

Portanto, não se iluda com a bajulação, João. Seu filme é apenas bom.

Dissabores sinônimos

A dromocracia cibercultural: lógica da vida humana na civilização mediática avançada, de Eugênio Trivinho, é complexo o suficiente para afastar os neófitos: fala da sociodromologia da violência invisível, da transpolítica da condição dromocrática, de iconocracia e hipertexto, da legitimação dissuasiva da cibercultura pela autoreferencialidade. Mas, para os familiarizados com a linguagem acadêmica, é de leitura indispensável, ainda mais se, como eu, têm pesquisas do tipo ‘Ciberdependência: o que lêem os futuros jornalistas’, a ser desenvolvida na Universidade Federal do Espírito Santo.

A definição de alguns conceitos, no entanto, já ajuda a decifrar o livro: dromocracia, por exemplo, foi criado pelo pensador francês Paul Virilio e significa a civilização moldada pela velocidade. Esta, segundo Trivinho, promove uma ‘modalidade renovada de segregação social tão implacável quanto invisível e doce em sua maneira de ser, seja no espaço interno do país, seja no cenário das relações internacionais’ (p.158).

Trivinho critica também os ‘discursos ciberufanistas internacionalmente correntes que, num influxo neo-iluminista pragmático, utilitário e, não raro, místico, desprovido de autoconsciência histórica e teórica consistentes acerca do modus operandi da época, apresentam a popularização progressiva dos objetos infotecnológicos (por ‘redução gradativa e irreversível’ de custos e/ou preços de mercado) e a ciberaculturação em massa como formas de viabilização ou provisão eficaz de ‘inclusão digital’ com o glamour populista de uma ‘inclusão social’ – capaz de reverter totalmente (em perspectiva) a regra permanente de exclusão (sistêmica e endêmica) da civilização tecnológica avançada’ (p.183).

A geração de uma elite cibercultural dromoapta é a conseqüência natural desse processo. Trivinho dedica seu livro ‘aos velozes e aos lentos, ombros diametralmente opostos sobre os quais pesam dissabores sinônimos: aos primeiros, aparentemente vencedores, a época distribui a violência factual da sustentação compulsória do modus operandi sociotecnológico; aos segundos, só aparentemente vencidos, fica a violência de um preconceito renovado, que aprofunda as formas de segregação social’.

Mas nem todos se deixam vencer pela dromocracia. Vinicius de Moraes era do tipo lento: segundo a bela revista de bordo da TAM, Brasil (almanaque de cultura popular), quando medalhões da MPB disputavam em programas de TV ‘A palavra é…’, ele nunca conseguia ‘pressionar o botão a tempo’, por isso sempre perdia o jogo. E, atualmente, há quem prefira a companhia dos lentos, simplesmente porque há muitas coisas (importantes) que são melhores se feitas bem devagarinho.

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Pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo e integrante da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi)