O acidente de carro que matou cinco jovens na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, levou a mídia nacional a um verdadeiro delírio em busca de explicações para o que não é tão facilmente evitável, ainda que seja trágico e triste: a morte em idade precoce. O motorista se perdeu numa curva da Lagoa porque estava alcoolizado e dirigia em alta velocidade? Provavelmente, mas não há garantia absoluta de que se estivesse sóbrio o jovem motorista teria conseguido evitar o acidente, por um motivo muito simples: jovens testam limites, se arriscam e morrem no mundo inteiro desde que o mundo é mundo.
Os pais bem-nascidos, coreanos ou brasileiros, tailandeses ou venezuelanos, desde que colocam os rebentos no mundo avisam que colocar prego na tomada dá choque, correr em cimento dá machucado. Aliviados enquanto têm um controle maior da situação, tornam-se mais aflitos quando suas crianças chegam à adolescência e começam a dar os primeiros passos rumo à tão sonhada liberdade e às famosas bobagens, que inevitavelmente fazem e que infelizmente, como no caso do acidente às margens da lagoa carioca, às vezes são fatais.
Álcool e cigarro
Daí a mídia brasileira fazer glamour com as mortes de jovens felizes e bem cuidados que perderam as estribeiras numa noitada, inventando a notícia que chocou o país, já é demais. Os meios de comunicação, em matéria de criança e adolescente, têm muito mais o que fazer e trazer à baila do que ficar sensacionalizando a tragédia pessoal de cinco famílias da classe média carioca. Não precisam e não deveriam esperar acidentes de carro para varrer madrugadas em boates. Há muito o que noticiar, trabalho é que não falta. Até hoje nenhum veículo colocou um repórter para trabalhar dentro da Febem e trazer a público as razões pelas quais ali se fabricam marginais. Fica mais cômodo, para não dizer hipócrita, cobrir com falsa perplexidade um acidente juvenil.
O próprio uso de bebida e tabaco faz parte do kit publicitário moderno que dá aos jovens o grau a mais de coragem para levar adiante a pulsão e “chegar” na menina, no poste ou na árvore. Mas sem tabaco, sem álcool, sem uso de quaisquer drogas eles também se arriscam, machucam-se gravemente ou morrem. Jovens morrem de ânsia pela vida, os corpos cheios de energia, tendem a uma certa inconseqüência cerebral. É verdade que o álcool agrava o comportamento, tornando-os mais agressivos, o cigarro aumenta a ansiedade e a maconha lhes deixa os reflexos mais lentos, efeitos buscados em corpos sedentos por sensações. Definitivamente não temos como prever se nossos filhos conseguirão chegar a salvo à maturidade, quando costumam pensar mais antes de agir, quando a reflexão finalmente surge à frente das ações impulsivas típicas da idade.
O delírio da mídia em chafurdar a intimidade das famílias envolvidas foi muito mais para vender a notícia sensacionalisticamente, pervertendo a ordem de muitas prioridades, sentimentalizando, pondo pais na cadeira de réu. Nenhum meio de comunicação pretende parar de veicular propaganda de álcool e cigarro para fazer a sua parte, assim fica o dito pelo não dito, é só encenação. Os anúncios são altamente rentáveis, o público já se sabe qual é, jovens de classe média e alta, então a válvula de escape foi encontrar outros culpados buscando respostas banais com especialistas.
Sem futuro
A explicação da juíza da 1ª Vara da Infância e da Juventude, Ivone Caetano, foi das mais duras, para não dizer cruel. Segundo ela, os pais foram negligentes por não saber onde estavam e o que faziam seus filhos, a madrugada toda na rua. Para Ivone Caetano, o acidente mostra que no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente só serve para os pobres. As matérias acabaram por aí, como se os repórteres não tivessem mais nada a perguntar à juíza, como se o papel do jornalismo fosse apenas o de fofocar e sensacionalizar. Os repórteres perderam, como de costume, a oportunidade de puxar pela resposta e ir mais fundo. Como assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente só serve para pobres? Não seria a mídia que só serve às classes média e alta?
Mais espinhoso seria averiguar a combinação entre as duas premissas e chegarmos à vergonhosa conclusão de que o Estatuto da Criança e do Adolescente serve para punir os infratores pobres em lugar de defendê-los, enquanto a mídia trata de proteger os interesses dos ricos a qualquer preço. Será que estamos precisando aumentar ainda mais a chaga das diferenças sociais?
Todos os dias centenas de crianças e adolescentes pobres morrem por motivos fúteis no Brasil, em tragédias que abalam suas frágeis famílias. Os mal-nascidos são presos na Febem, onde fazem escola de marginalidade, sofrem maus-tratos dentro e fora de suas casas e consomem crack a céu aberto. Crianças se arriscam a sofrer atropelamento em sinais de trânsito, são abandonadas pelas ruas, espancadas, formam-se assaltantes, chegam aos 16, 17 anos sem dentes, com a saúde debilitada, atrasadas na escola. São crianças sem futuro, não comovem a mídia; suas vidas não são apresentadas como preciosas. E nós somos diariamente levados a pensar que valem menos, o que é de fato assustador.
Jovens do mal
É tão comum morrer de pobre no Brasil que isso não dá capa nem enquete, não rende, não emociona e até irrita muita gente. Mas é óbvio que enquanto a equipe do Fantástico filmava a entrada das boates Brasil afora, muitas crianças e adolescentes flanelavam carros nas redondezas. Não sobrou pedacinho sequer de filme para atestar os riscos que crianças e adolescentes pobres correm nas madrugadas. Os jovens que causam comoção nos meios de comunicação são consumidores dos produtos anunciados pela mídia, incluindo aí o álcool, o tabaco e os carros bacanas, por isso suas vidas valem tanto. Se o acidente fosse num Fusca 68 com cinco jovens fumadores de crack não haveria espaço para emoções ternas, seriam explorados os sentimentos de raiva das classes média e alta.
Bem-nascidos, bem cuidados por pais amorosos, bem-alimentados e bem-informados, porque todos sabiam que não deveriam andar com motorista alcoolizado, os cinco jovens tinham um futuro pela frente interrompido por uma fatalidade, uma audácia que não deu certo, quiçá por abuso de uma droga lícita, propagandeada por todos os meios de comunicação. O bafafá em torno do caso chega a ser uma afronta diante do caos social a que estão submetidos os jovens que são maioria no país: os mal-nascidos.
O sentimentalismo que o Fantástico colocou em cima da notícia, com o tom de denúncia sobre imagens de boates onde jovens bebem e depois dirigem seus carros de volta para casa, é enjoativo. O serviço prestado serve para separar ainda mais ricos de pobres. A máxima levantada pela juíza de que o ideal é trancafiar em casa os jovens de futuro, de bem, deve prosperar. Assim as ruas ficam livres para que só os menores consumidores de crack se arrisquem. Afinal, crack é coisa dos jovens do mal, aqueles que quando merecem capa já entram como bandidos, aqueles que não têm direito a cerimônia fúnebre bacana, os que são literalmente engavetados, vivos ou mortos.
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Jornalista