Li neste Observatório da Imprensa nota intitulada ‘Hamas usa sósia de Mickey em campanha contra Israel‘. Militantes do Hamas estariam usando uma réplica do ratinho símbolo da Walt Disney Company ‘para divulgar mensagens da dominação islâmica [sic] e da resistência armada para o público infantil em um programa da emissora de TV al-Aqsa chamado Pioneiros do Amanhã ‘. A imitação do Mickey se chama Farfour.
Este foi o trecho da matéria que mais chamou a minha atenção:
‘O programa conta também com a participação de crianças, cantando hinos sobre a luta contra Israel – que há muito tempo vem reclamando que os canais palestinos incitam ódio ao povo israelense. David Baker, porta-voz do primeiro-ministro israelense Ehud Olmert, afirmou que `não há nada cômico sobre ensinar novas gerações de palestinos a odiar israelenses´. Mark Regev, porta-voz do ministério do Exterior, acusou os palestinos de não assumir o compromisso de parar de incitar ódio contra Israel. `As crianças aprendem que matar judeus é algo bom´, diz.’
Ano passado foram amplamente divulgadas na internet fotos de crianças israelenses escrevendo mensagens nos mísseis que seriam lançados contra as posições palestinas no Líbano. Crianças e adolescentes, usando batom e lápis de desenho, aparentemente descontraídas, escreviam mensagens nos petardos e conversavam com os soldados. Ao lado, seus pais acompanhavam a visita ao front, certamente orgulhosos de verem seus filhos se instruindo na arte da matar, indiferentes à dor que possam causar.
Baseado naquelas fotos, acredito que qualquer porta-voz do Hamas poderia dizer que ali ‘as crianças aprendem que matar palestinos é algo bom’. Pelo visto, crianças de ambos os lados são vítimas dos senhores do ódio e da intolerância, da ganância e da prepotência.
Entre a cruz e a bala perdida
Tudo indica que, para a imprensa, cabe às crianças apenas o papel de mártires, com as conseqüentes (oportunas?) ‘comoções públicas’. Na trajetória das balas perdidas, geralmente se encontra uma criança. Parece fatalidade, entretanto isso é apenas uma questão de probabilidade facilmente verificável, pois as ruas e becos das favelas, onde o confronto polícia-bandido torna-se cada vez mais comum, estão sempre ocupadas pelos pequeninos, que, além do aparelho de TV, contam somente com esses espaços para extravasar suas energias em atividades lúdicas.
Nasci e me criei em uma casa localizada numa praça, a mais concorrida de Santana do Ipanema, no sertão alagoano. Sei o que a Praça do Monumento representa em minha vida: as brincadeiras da infância, os encontros com os amigos na adolescência, as quermesses durante as novenas de Nossa Senhora da Assunção, cuja capela foi construída na praça como um marco da virada do século 19 para o 20, os comícios nas épocas de campanhas políticas.
O Ginásio Santana, localizado na praça da Assunção, como também é conhecido aquele logradouro, foi construído nos anos 1930, para sediar um batalhão da Polícia Militar, que fez os trabalhos volantes quando da perseguição a Lampião, o Rei do Cangaço, e seu bando. Cumprida a missão, o prédio foi transformado em um ginásio, que funciona até hoje. Tudo aquilo faz parte da história de todos nós, santanenses, uma cidade de aproximadamente 30 mil habitantes, mas que conta com um bom número de praças. Recentemente visitando a cidade, descobri uma nova praça, ao lado da cadeia pública, uma praça até ‘simpática’, mas praticamente sem freqüentadores. O mundo está cheio dessas coisas: uns com tanto, outros sem nada.
O rato-imitação
O cineasta gaúcho Kais Ismail, 43 anos, criou uma comunidade no Orkut, a fim de promover uma campanha a favor da construção de uma praça pública para as crianças palestinas. Na descrição da comunidade orkuteira, Kais informa:
‘Sei que existem outras crianças sofrendo no mundo, mas as que não possuem uma única praça, parque, campinho de futebol, ou qualquer espaço físico público para brincarem, só mesmo as palestinas. O que resta para elas são as mesmas ruas que trafegam os tanques de guerra, ou os terrenos baldios que estão se transformando em lixões. O que fizeram estas crianças para receberem tamanho castigo? Sem uma única praça, sem um único canto. O que tem a dizer um psicólogo sobre este assunto? O que você tem a dizer sobre este assunto? O Orkut, no meu entender, se usado com amor pelo próximo, é capaz de tornar o mundo mais suportável. Vamos nos unir e dar uma praça para as crianças palestinas’.
A população original de Ramallah, cidade palestina, é cristã, como a população de minha Santana do Ipanema (AL), porém, no final da guerra de 1948, muitos palestinos refugiaram-se na cidade. Atualmente muçulmanos e cristãos convivem em completa harmonia. Porém o perigo mora ao lado, como todos sabemos. Na cidade de Ramallah residem 40 mil pessoas, mas existem 88 cidades e vilas nos seus arredores, e a população do distrito é de aproximadamente 220 mil habitantes. Não consigo imaginar uma área dessas sem uma única praça na qual as crianças possam esquecer, por alguns momentos, o horrores da guerra.
O irmão de Kais foi morto por israelenses na Cisjordânia, em 2004, e ele agora dedica parte de seu tempo à busca de ajuda para construir uma praça para as crianças palestinas, um espaço para se reunirem e brincar. Tudo indica que o espaço, caso venha a ser criado, se chamará Praça Brasil; por enquanto, é apenas sugestão dos membros da comunidade orkuteira, da qual também participo.
O cineasta Kais Ismail já foi premiado no Festival de Gramado e hoje trabalha na área de publicidade. Num dos seus tópicos no Orkut, ele nos diz: ‘A fome e as privações são muito mais sentidas e revoltantes para as crianças quando elas percebem que já não são mais tratadas como crianças’. E, com um explícito e compreensível tom de queixa, também revela:
‘Para os problemas da Palestina são necessários bilhões de dólares. Nem mesmo os 100 milhões que a Europa enviava anualmente era suficiente. Faltou sensibilidade [à Fepal] para perceber que a nossa causa tem como objetivo preservar a saúde mental e psicológica destas crianças pela bagatela de 150 mil dólares. Sem considerar o efeito moral desta construção, o sentimento de liberdade para estas crianças e o prazer que proporcionará aos seus pais ao vê-las felizes brincando. A Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), tem pessoas inteligentes, estudiosas e bem educadas em sua direção; mas, nenhuma com a experiência de passar fome como os palestinos passam, de serem torturados como os palestinos são torturados, de enterrar parentes pelo mesmo motivo que os palestinos enterram seus parentes. Talvez, se tivessem passado por isso estariam agindo diferente’.
Seus parentes e amigos na Palestina fizeram contato com a prefeitura da cidade de Silwad, e esta já se dispôs a ceder um terreno de 7 mil metros quadrados para a construção da praça. Faltariam verbas. ‘Se as crianças brincarem mais, conseguirão vislumbrar o que é viver em paz’, diz Ismail, que tem dupla cidadania e pais morando na Palestina. A idéia de fazer a campanha surgiu quando ele e amigos observaram que em todo território palestino não há nenhuma praça. ‘Os únicos espaços do tipo são pagos’, informa.
O embaixador do Brasil nos territórios palestinos ocupados, Arnaldo Carrilho, em matéria do jornal carioca O Dia, confirma: ‘O Kais tem razão. Não há parques infantis nos territórios Palestinos ocupados ilegalmente por Israel há 40 anos’.
A comunidade no Orkut tem o título de ‘Praça para crianças palestinas‘.
Crianças sem uma praça para brincar?! Não, não consigo conceber. Mal comparando, equivale a adultos sem praça de guerra.
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Escritor, Rio de Janeiro, RJ