Muitos já me perguntaram que diabos aquele Jornal do Brasil das décadas de 1960 e 70 tinha de tão extraordinário para ser tão incensado entre aqueles que tiveram o privilégio de lá trabalhar. Ou viver, porque aquele templo meio sagrado não era um lugar onde apenas se trabalhava. Vivia-se a vida por inteiro, com seu lado escuro, sombrio, ardiloso, multifacetado, mas, ali, ela também se apresentava com imensa clareza a nos mostrar caminhos ensolarados que nos serviam de guia.
Éramos muito jovens, sonhadores, tudo bem, um tanto ainda imaturos em nossas aventuras, mas pujantes em nossos ideais por um jornalismo mais sério e responsável. Queríamos fazer escola e, de certa forma, a fizemos. Levas e levas de estudantes de jornalismo do Brasil e do exterior, principalmente da América Latina, corriam até aquele lendário prédio da Avenida Rio Branco, coração nervoso de um Rio já falecido, em busca do que não conheciam, não experimentavam, não vivenciavam. Seus heróis éramos nós.
Por lá também passavam outros heróis, nossos e de todos, alguns até faziam daqueles históricos espaços um puxadinho de suas casas. Clarice Lispector era uma delas. Escritora já famosa, era uma das mais prestigiadas colunistas do JB, mas fazia questão de ir ao jornal entregar seus trabalhos ao editor e pessoalmente, apesar da fama de figurinha difícil. De vez em quando subíamos juntas pelo elevador. Caladona, nada mais do que um “oi Magda, oi Clarice”. Geralmente, ficava lá no fundo, onde permanecia de olhos baixos, mãos coladas no corpo e quase invisíveis, provavelmente para esconder as cicatrizes causadas pelo fogo que as deformou durante um incêndio em seu apartamento, anos antes.
Pelos corredores que serpenteavam o terceiro andar circulavam todos aqueles que, de alguma maneira, fizeram História na música, na dança, na literatura, nas artes em geral, no próprio jornalismo, nacional e internacional. Os grandes sambistas e nomes da MPB eram presenças constantes, até porque a também lendária Rádio JB funcionava alguns andares acima. Onde o cidadão comum podia trocar um prosa no café com Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Nelson Cavaquinho, Monarco, Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Angela Maria, Cartola, Moreira da Silva, Ataulfo Alves, Elis Regina, Natal da Portela e Sargentelli, que então dividia com Carlos Machado o título de Rei da Noite Carioca? E o que dizer da presença rotunda de Di Cavalcanti, da queridíssima Leila Diniz, de Madame Satã, famoso travesti-bandido (ou vice-versa ou nada disso ), que apesar da vasta folha corrida nas delegacias do bairro era o anti-herói mais famoso da Lapa?
Não posso me esquecer dos grandes nomes da literatura nacional que por lá circulavam, como velhos amigos em busca dos melhores amigos. “Oi, Callado” (Antonio Callado); “Tudo bem, Drummond?”( Carlos Drummond de Andrade ); ” Que tal um café, Affonso?” (Affonso Romano de Sant’Ana); “Amado, aproveita e me dá um autógrafo” (Jorge Amado). E outros, muitos outros de uma imensa lista que faziam parte do nosso cotidiano, muito nos ensinaram, muito amamos e ainda nos emocionam.
E aí veio a derrocada desse que, um dia, foi um modelo para o jornalismo brasileiro e internacional, principalmente neste lado de cá do mundo. O que aconteceu, além do que já sabemos e do que seria, digamos, trivial em países como o Brasil? Teria sido a tal má gestão o único vilão? Ou a falta do indispensável comprometimento com o melhor da profissão? Quem sabe malfeitos familiares que desidrataram financeiramente a empresa? Fogo amigo? Vaidades inconcebíveis em tempos mais modernos?
Um pouco disso tudo talvez. Ou algo mais que desconhecemos ou, se não desconhecemos, temos o pudor de não revelá-lo. De qualquer forma, direta ou indiretamente, uma semente foi plantada. Deu frutos e alguns deles ainda podem ser vistos por aí, meio invisíveis, talvez até esquecidos, mas ainda de pé.
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Magda Almeida é jornalista