Eu, Waldemar Luiz Kunsch, jornalista, relações-públicas, editor, filósofo e professor universitário, solicito que cancelem minha assinatura da revista Veja, que está no nome da minha esposa, Margarida Maria Krohling Kunsch, e tem o código 530335819.
A assinatura vence só em agosto. Seu serviço de atendimento ao assinante informou-me que, em caso de cancelamentos, o valor correspondente ao período ainda não vencido é devolvido. Em e-mail à parte lhes enviarei o número de minha conta bancária, para efetuar tal devolução. Para seu conhecimento, essa importância (pequena no montante, mas expressiva em seu simbolismo) será passada ao Padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, da Arquidiocese de São Paulo.
Como estão fazendo dezenas de entidades e personalidades, recomendo aos que lerem este e-mail, bem como a seus amigos, que façam o mesmo, cancelando a assinatura de Veja. E, desde já, autorizo a publicação desta mensagem por quem desejar fazê-lo.
O motivo da decisão que estou tomando são as afirmações ofensivas e sem fundamento feitas exatamente contra o Pe. Júlio Lancelotti, na edição de 11 de janeiro de Veja, por Camila Antunes, no entretítulo ‘O pecado da demagogia’, da matéria ‘A solução é derrubar’, que trata das rampas antimendigo implantadas em São Paulo pelo secretário municipal Andrea Matarazzo, numa prática administrativa caracterizada por peritos e pesquisadores como nitidamente ‘higienista’. Até hoje não consegui ‘assimilar’ a referida matéria, simplesmente porque ela era insuportável, do ponto de vista do jornalismo e da ética. Só lamento ter demorado tanto em cancelar a assinatura da revista.
Do ponto de vista do jornalismo, a repórter cometeu muitos pecados, inclusive o da demagogia que ela acusa no Pe. Júlio Lancelotti. Que ‘competência’ (antropológica, política, humana, filosófica, teológica, religiosa, sentimental etc.) ela se arrogou para alinhar tantas inverdades, arvorando-se em ‘analista social’ ou ‘socióloga urbana’ sem o ser, além de ‘inquisidora’ que lembra lances dos mais tristes da Idade Média? Pastoral de Rua, uma ‘organização política’, que propiciaria àquele sacerdote, ‘criador de uma categoria (sic) formada por mendigos, menores abandonados e loucos que vagam pelas ruas de São Paulo’, residente em um ‘bunker antimendigo’, ter à disposição um ‘rebanho de manobra para fazer política’, sendo seus motivos ‘muito mais do que religiosos’…
Atrapalhada com conceitos
É isto que a repórter deduziu da entrevista com o Pe. Júlio, reconhecidamente um cidadão muito esclarecido, consciente, objetivo, batalhador, bem-intencionado, muito humano? Além do que, por falta de uma pesquisa mais consistente, ela só prova não entender que ‘o que falta mesmo na cidade é política pública para esta população, e as rampas não são de forma alguma solução para nada’, devendo-se ver e trabalhar esse contexto como uma ‘realidade complexa que exige respostas complexas’, conforme disse Fernando Altemeyer Júnior, que cito mais adiante.
Do ponto de vista da ética, ela contradisse quase tudo o que a Editora Abril declara como sua missão – ‘contribuir para a difusão de informação, cultura e entretenimento, para o progresso da educação, a melhoria da qualidade de vida, o desenvolvimento da livre iniciativa e o fortalecimento das instituições democráticas do país‘ – e preconiza como seus valores – ‘excelência, integridade, pioneirismo e valorização das pessoas‘. Atente-se para os grifos.
Tanto do ponto de vista do jornalismo quanto do da ética, têm razões de sobra todas as entidades e pessoas que viram na ‘reportagem’ em questão uma matéria mal feita, demagógica, repleta de preconceitos e, por tudo isso, uma expressão de mau jornalismo, considerando a repórter uma ‘sonsa, atrapalhada com conceitos e categorias’ e a revista Veja um ‘panfleto político’, marcado por ‘cinismo retórico’. O cinismo, no caso em questão, ficou mais do que patente no ‘acordo’ que a ‘repórter’ propõe ao Pe. Júlio: ‘A prefeitura retira as rampas e o padre abandona o seu bunker e passa a morar debaixo do viaduto. Lá, poderá controlar os assaltantes e encontrar a santa felicidade junto ao Povo da Rua’.
Duas manifestações acerca dessa matéria me pareceram especialmente pertinentes: a de Fernando Altemeyer Júnior, professor e ouvidor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no dia 16/1/2006; e a do jornalista Walter Falceta Jr., no dia 18/1/2006.
‘Apuramos muito mal’
Para Altemeyer – ‘Veja erra gravemente!’ –, a repórter cometeu ‘o pecado original do mau jornalista: matéria sem pesquisa e comprovação de dados. Criou ficção e não foi capaz de ver a realidade. Este é um paradoxo terrível para um órgão semanal que se denomina Veja’. No texto de Falceta – ‘Quando o jornalismo de latrina dispara contra a beatitude’ –, sobressaem a lucidez e a competência com que o autor expõe ‘a enorme quantidade de incorreções em tão escassas e mal digitadas linhas’, analisando ‘onze pecados da ‘reportagem’ [aspas do autor] de 11 de janeiro’. Para ele, ‘o esclarecimento dos fatos sugere duas hipóteses: a) Como é de praxe, o material da moça foi violentamente adulterado e editado pela intelligentsia que controla a revista. b) Durante o contato com o padre, a jornalista desenvolvia à sorrelfa a manjada tática de Veja: simular uma grande entrevista para coletar uma frase ou palavra que comprometa a vítima da vez ou que corrobore as mirabolantes teorias engendradas pelos editores da revista’.
Falceta também se refere à seção de cartas da edição seguinte de Veja. A análise por ele feita traduz exatamente o que todo leitor inteligente pôde perceber nessa seção: ‘Escancara no desequilíbrio da seleção de opiniões mais uma molecagem. Exagera-se em número e intensidade o que serve para desqualificar a vítima. Reduz-se na peraltice o que lhe possa ser favorável. No caso presente, os que reconhecem a beatitude foram ignorados. Imagina-se que as manifestações indignadas de entidades, clérigos, políticos e cidadãos seguiram despachadas, em via inversa, nas produtivas latrinas da redação’.
Vale acrescentar aqui considerações anotadas a partir de relatos de notáveis jornalistas na 4ª Semana de Jornalismo, realizada na Universidade Metodista de São Paulo de 20 a 22/9/2005, em comemoração ao 30º aniversário do assassinato de Wladimir Herzog. Disse, no evento, Marcelo Beraba, ombudsman da Folha de S. Paulo: ‘Se formos discutir os vários problemas que assolam a imprensa e contribuem para um questionamento em relação à sua credibilidade, veremos que o ponto fundamental é a questão da apuração da informação. Apuramos muito mal’. Para José Hamilton Ribeiro, é necessário ter vocação para fazer um verdadeiro jornalismo investigativo: ‘A pessoa que tem vocação para ser jornalista vai ser jornalista – e dos bons. É uma profissão de competição, de muita cobrança. O erro do jornalista é mais visível, fica escancarado. Mas, havendo vocação, o resto é fácil’.
Outras experiências
Comentando os resultados da 4ª Semana de Jornalismo, Rodolfo Martino, coordenador do Curso de Jornalismo da Metodista, pondera: ‘A lembrança e discussão do caso Herzog trazem à tona uma realidade distante das novas gerações – sejam estudantes de Jornalismo, sejam profissionais recém-formados. Esta tônica trata das implicações sociais e transformadoras que acarreta o exercício da profissão’. Para Martino, ‘hoje o glamour de ser jornalista está em alta – muito provavelmente, a partir da notoriedade que a televisão consagra a quem apareça na telinha, seja apresentando um noticioso, seja como participante de um abominável reality show‘.
E acrescenta: ‘Talvez por isso os profissionais de imprensa estão mais preocupados com a ascensão social e financeira – nenhum demérito nisso, aliás – do que propriamente com as funções crítica e fiscalizadora que todo e qualquer jornalista deve exercer’. São ponderações que vêm muito a propósito no caso da ‘jornalista’ Camila Antunes, com sua ‘reportagem’ na revista Veja. Ainda segundo Martino, ‘as intervenções dos jornalistas convidados para o evento ‘puderam, de certa forma, assinalar o peso da individualidade na tarefa de alargar os limites que o mercado muitas vezes nos impõe. Ficou claro para os estudantes: essa marca só é possível mediante competência técnica e uma sólida formação cidadã e contemporânea’.
Concluo com as revelações feitas, no evento da Metodista, por Mino Carta, hoje diretor de Redação da excelente revista CartaCapital e que, no passado, foi responsável pela renovação editorial e visual da revista Veja. Diz ele, relembrando o caso Herzog: ‘Tive um grande envolvimento com este episódio. Entendi ali que o país precisava de um jornalista e não apenas de um profissional de imprensa’. Rodolfo Martino lembra, a propósito, o que o notável jornalista registrou em seu livro Castelo de âmbar, na pele de Percúcio Parla: ‘A morte de Wladimir Herzog é o ponto de ruptura. Mino sabe que a sua concepção de jornalismo já não se justifica à sombra da arvorezinha, símbolo da Abril, e o impele na direção de outras experiências’. [São Paulo, 6 de março de 2006, Waldemar Luiz Kunsch]
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Jornalista