‘Quando falamos em avançar, não se trata, como dizia aquela antiga canção da Jovem Guarda, de `entrar na rua Augusta a 120 km/h´, mas de acelerar, com firmeza, na estrada certa, na hora certa, mantidos os limites ideais de segurança…’
Depois de saudar as autoridades presentes, na segunda-feira (22/1), ao dar início ao discurso de lançamento do PAC, o presidente Lula fez a citação acima, não percebendo nisso um erro histórico, crasso. A música citada por ele é anterior ao movimento da Jovem Guarda, mas o erro maior não foi dele, e sim de seus assessores, e principalmente, pasmem, da imprensa escrita, televisada, radiofonizada e ‘blogueada’.
A música, em questão, é de Hervé Cordovil (não confundir com Clodovil), já experimentado maestro e compositor. Rua Augusta é o símbolo de um Brasil em fase de industrialização, quando os valores entravam em contradição, quando a classe operária já poderia sonhar, um dia, em ter um carro, privilégio até então da aristocracia cafeeira ou da burguesia ascendente. Foi composta não por um jovem da época (Hervé nem era mais jovem assim), e representava a aspiração de quem já fabricava carros, mas andava a pé.
A música foi interpretada e lançada por seu filho, Ronnie Cord, cantor e compositor da primeira fase do rock brasileiro, responsável pela gravação, e acompanhado pelo grupo The Jet Blacks.
O governador e o relógio
Naquela segunda-feira Lula não errou tanto assim, apenas sacramentou sua condição de operário, em busca de uma vida mais digna, bordão que ele carregou ao longo de toda sua trajetória.
Nada de muito errado com Lula, salvo manter assessores incompetentes. Lula precisa urgentemente de assessores que tenham coragem de ‘peitá-lo’ quando ele estiver prestes a cometer uma gafe como aquela. O pior estava reservado aos jornalistas e seus patrocinadores, preocupados em ‘minar’ a cerimônia de lançamento do PAC. Este início do discurso encerra toda a contradição em que vive o Brasil de hoje.
E, por falar em contradição, o governador de São Paulo se mostrou mais aflito, na primeira fila dos convidados, do que provavelmente estivera nos dias de maior crise, com a cratera do metrô. Olhou várias vezes para o relógio, numa atitude de profunda descortesia ou falta de educação, o que seria mais preciso. Como se não bastasse, com o semblante carregado, passou a segurar com a mão direita o relógio, como se assim fosse possível acelerar o tempo. Ele não estava ali, estava provavelmente se vendo num futuro não muito distante, ali naquele mesmo salão, contudo no futuro. Na verdade, ele pensa no futuro e não no presente, e muito menos num passado não muito remoto, alguns dias atrás (tarde de sexta-feira, dia 12 de janeiro de 2007).
Incompetência de assessores e setoristas
Voltemos a Lula. Seu deslize demonstra, por um lado, o desconhecimento de alguns aspectos de um tempo em ele é um dos principais personagens. Ao citar Rua Augusta, ele deve ter evocado um período em que nem televisão em casa tinha. Conforme seu relato (em publicações que podem ser fartamente consultadas), por essa época, final da década de 1950, ele caminhava alguns quilômetros, diariamente, por não ter dinheiro para pegar ônibus para ir ao trabalho. A Rua Augusta, no centro de São Paulo, era uma quimera inacessível, vista, quando muito, nas chanchadas produzidas por Carlos Manga, estreladas por Carlos Imperial, Johnny Hebert e Ronald Golias. Vivíamos um período pré-industrialização, pré-jovem guarda, pré-ditadura militar.
Embora Rua Augusta tenha sido executada exaustivamente, nos programas dominicais da Jovem Guarda, ela não é representativa do período; O Calhambeque, sim – esta, composta e executada por Roberto Carlos. No imaginário desse ex-operário, constantemente ridicularizado pela imprensa e por seus adversários políticos, com certeza houve confusão. O que não se perdoa é a incompetência de assessores e setoristas que ‘comeram barriga’, perdendo essa piada. Esses também nada sabem do que escutam ou escrevem, em sua grande maioria, é claro.
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Dramaturgo, São Paulo, SP