A imprensa carioca tem estranhado muito as atitudes do prefeito César Maia frente à intervenção federal nos hospitais municipais do Rio de Janeiro: aplausos na primeira hora; oposição na segunda; argumentos algo desencontrados no resto do tempo. Nesse meio tempo, estaria indo pelo ralo a sua imagem de bom administrador, que em princípio o credenciava para candidaturas a altos postos de governo.
Os repórteres, como bem se sabe, sempre estranharam fatos como Maia usar jaqueta em plena canícula carioca ou pedir sorvete em açougue. Agora, numa crônica, o jornalista Luiz Garcia presta um testemunho dos mais sintomáticos sobre esse propalado comportamento excêntrico (O Globo, 25/3/05).
Relata Garcia ter participado de um almoço no gabinete do prefeito, em que os pratos estavam servidos no meio da mesa e cada convidado escolhia o seu, que um garçom então levava a esquentar num microondas. Comenta:
‘Não recordo o que comi, apenas que para César não fazia a menor diferença: falou o tempo todo, seu prato foi trocado duas vezes e nunca ele levou garfo à boca’.
Episódio pequeno, certo, mas que não deixar de suscitar risadinhas nervosas nos leitores ou ouvintes.
A galope
Coisas desta ordem evocam textos de Jean Baudrillard, o conhecido pensador da dita pós-modernidade, em que ele mostra como as ‘mascaradas’ (excentricidades, pequenas loucuras, besteiras, paródias grotescas etc.) podem servir de ilustração a qualquer estrutura de poder e, até mesmo, do funcionamento da política. Diz ele:
‘Se aventarmos a hipótese de que o poder sustenta-se apenas dessa simulação grotesca e que é de qualquer forma uma espécie de desafio à sociedade, e não absolutamente a sua representação, então Bush é o equivalente de Schwarznegger. Melhor: ambos preenchem perfeitamente o seu papel’.
Para Baudrillard, tudo depende da idéia que se faça do poder. Se o pressuposto é o da inteligência no poder, então a permanência da burrice ou da besteira no poder seria inexplicável. Mas os raros exemplos históricos da inteligência no poder mostrariam que ela se transforma muito rapidamente em burrice.
‘Seria, logo, a prova de que, em algum lugar, a burrice faz parte dos atributos do poder, é quase um privilégio da função. Talvez essa função remonte àquela, ancestral, de ter de assumir a parte maldita do social –– inclusive a estupidez ––, que nos faria remontar aos ‘manequins do poder’ das sociedades primitivas e que explicaria porque os mais limitados, os menos imaginativos se mantêm ali por mais tempo’.
Isso explicaria muita coisa. Por exemplo, ‘a disposição geral das populações a delegar sua soberania aos mais inofensivos, aos mais oligocéfalos de seus concidadãos. É uma espécie de espírito travesso que leva as pessoas a eleger alguém mais besta do que elas’. Haveria assim também um secreto júbilo em assistir ao espetáculo da besteira e da corrupção dos homens no poder.
O artigo de Luis Garcia nos dá, entretanto, uma outra versão sobre a fenomenologia dessa política concebida pelo pensador francês. Para o jornalista, ‘Cesar Maia mostrou ser hábil estrategista político, mesmo quando seu comportamento era decididamente excêntrico.’
Ou então, no tal almoço: ‘Seus argumentos e idéias eram bem melhores que o prato feito oferecido aos visitantes’.
Quer dizer, é uma outra versão, mas no fundo em nada radicalmente diferente do que diz Baudrillard, já que para este ‘o poder é uma configuração virtual, que absorve e metaboliza em seu benefício qualquer elemento’. Inclusive, claro, uma ‘hábil estratégia política’, segundo Garcia, que observa:
‘A imagem de bom administrador de sua personalidade, extravagâncias incluídas, acompanhou o prefeito até a recente reeleição. Estranhamente, ela o está abandonando, a galope, na atual crise com Brasília’.
Tento fácil
Não parece estranho, porém, que uma ‘boa imagem’ se dissolva naquilo mesmo de que ela é feita: o éter, o circuito eletrônico, as puras aparências.
Estamos cansados de saber como a tecnoburocracia e seus representantes, excêntricos ou não, podem simplesmente simular uma grande racionalidade (e para isso a mídia é estratégica), em especial nos instantes de crise econômica ou de coerência administrativa. É uma simulação que se sustenta enquanto não se torna visível a violência institucional que a garante.
O problema é que, no Rio de Janeiro de agora, juntou-se à violência anômica das ruas (o escandaloso descontrole da segurança pública) a violência institucional dos remédios e dos aparelhos médicos desaparecidos, dos quadros assistenciais sem profissionais em número suficiente, da indiferença brutal dos poderes públicos à sorte das populações que os elegeram.
Em geral o estado de violência ou violência institucional permanece invisível. Agora se visibilizou, ao lado da outra, levando a dura realidade a desinflar a bolha da imagem. Um prato feito para o Planalto, que normalmente perde em briga política com qualquer um. Desta vez, marcou um tento, sem precisar sequer levar o prato ao microondas.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro