Nos últimos meses, a revista piauí dedicou boas páginas aos perfis de três potenciais candidatos(as) ao Planalto: Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva. Chamou-me a atenção a dureza do artigo sobre Dilma e a absoluta condescendência com Marina (matéria de janeiro de 2010), cujo texto é assinado pela jornalista Daniela Pinheiro. Algumas diferenças de tratamento são gritantes. Cito duas: Marina Silva aparece em página inteira, numa linda fotografia do querido das estrelas, J. R. Duran. Dilma aparece em meio a um documento do Dops, numa foto 3×4 tirada certamente por um ‘artista’ dos porões. Ao contrário de Marina, a ministra da Casa Civil aparece jovem, quase infantil, com óculos do tamanho daqueles de mergulho e cabelo desgrenhado. Não tem a fisionomia das mais leves – afinal estava sendo presa, provavelmente a caminho da tortura.
Interessante que esse tipo de exposição da ministra venha bem no momento em que seus marqueteiros pretendam uma revitalização de sua imagem. Neste sentido, a comparação não poderia ser mais desfavorável para Dilma. Outra diferença: o redator do perfil de Dilma Rousseff é antigo desafeto do PT e do presidente Lula, Luiz Maklouf Carvalho. Foi ele quem publicou a primeira reportagem contando a história da filha do presidente, Lurian. Também foi barrado por Lula para a bancada de um programa Roda Viva da TV Cultura, em 1999. Não se pode chamar de uma das escolhas mais isentas do mundo. Basta procurar aqui mesmo: à época, Carvalho publicou no Observatório suas indignações quanto ao veto…
Imagem de lenta vai por água abaixo
O perfil de Marina Silva parece ter um propósito: rebater todas (todas!) as críticas-chave feitas à ex-ministra do Meio Ambiente. Quais sejam: sua suposta passividade, suas andanças junto aos verdes endinheirados e pouco ideologizados, sua vinculação ao criacionismo e por aí vai.
Comecemos com os verdes endinheirados. Você acha que Marina está à vontade com tal parceria? Se pensa isso, basta ler o perfil. Daniela Pinheiro começa o perfil narrando a história de uma carona: no mesmo carro com a ‘grã-fina’ Ana Paula Junqueira e com a esposa do presidente do Partido Verde, Patrícia Penna, Marina parece não esconder sua insatisfação. Uma lhe propõe agendar um encontro com o primeiro-ministro britânico Gordon Brow – Marina nada responde. Outra a convida para uma visita à Semana de Moda do Design Sustentável – Marina olha ‘impassível para a frente’. Por fim, Patrícia ainda tenta que sua amiga Junqueira convide Stella McCartney e Al Gore para o evento. Marina dá alguma opinião? Esboça reação? Não, ‘continua imperturbável’. Deve ter sido uma viagem longa ao lado desta estátua de mármore.
Ao final da matéria, Daniela Pinheiro relata um encontro entre verdes, ricaços e famosos com Marina Silva. A platéia, após apenas uma pergunta, calou-se. A anfitriã, desta forma, encerrou a conversa ‘sob o olhar aturdido da senadora’. Marina, se o leitor ainda não percebeu, não se sente à vontade no meio deste povo, está permanentemente contrariada. Deste último encontro, aliás, nem se deu o trabalho de anunciar a saída – ‘foi embora à francesa’.
A matéria é preenchida por passagens que conferem a Marina dinamismo e uma capacidade quase divina de ser mais de uma. Sua imagem de lenta, devagar, vai por água abaixo nesta matéria. As referências a seu dinamismo escorrem pela matéria: ‘Depois de dezenove horas ininterruptas de compromissos…’; ‘A agenda era pesada’; ‘naquela manhã, Marina cumpria seu nono compromisso’. Mas a minha preferida foi esta: ‘Ao mesmo tempo em que conversava, lia o clipping dos jornais, despachava com assessores e checava mensagens pelo celular.’ Como assim, ‘ao mesmo tempo’?
Os que enfrentam e os que fogem da apresentadora
Descobrimos, também, que Marina é uma grande oradora, que empolga as multidões, embora esse viés nunca tenha sido sequer cogitado por jornalistas em outras ocasiões. O que se sabia de Marina era que possuía uma fala arrastada, sempre repisando os mesmos argumentos. Bem, a matéria fala desse seu aspecto (como não falar disso?), mas se apressa em contrapor argumentos do tipo: ‘Ao vivo, ela é imbatível’, ‘conseguiu hipnotizar a platéia’; ‘ela comove a audiência’; ‘ela tinha uma oratória incrível’. Nunca vimos essa Marina. Pelo contrário, basta ligar a TV Senado para assistir uma senadora ainda mais monocórdica que Eduardo Suplicy.
Marina é séria, concentrada. ‘Atrasada’ para a reunião da Comissão de Constituição e Justiça (como não estaria, já que se desdobra em tantas?), ainda conseguiu parar para conversar ‘com quem a interpelasse’. Entra na sala e o que faz? ‘Sentou-se na primeira fileira.’ E quanto aos debates, por vezes enfadonhos, da Comissão? Pois se nota o orgulho da repórter ao poder escrever que a senadora, ‘diferente da maioria dos senadores (…), prestou atenção na sessão e não conversou com ninguém’. Eu, que dificilmente frequentarei uma sessão destas, poderia pensar: chegamos ao ponto de admirar um político que se comporta tão bem quanto nossas crianças em idade escolar – não faltam, não conversam, prestam atenção.
Marina é excepcional. Quando criança, ‘aprendeu matemática em uma noite’, embora só tenha se alfabetizado aos 16 anos. Era esperta ao ponto de, pequenina, como conta sua irmã, insistir em dizer ‘colher’, ao invés de ‘cuié’. Mas que maravilha! Informação preciosíssima, aliás, capaz de mudar votos na eleição presidencial. Outro ponto marcante de sua trajetória, contado dramaticamente por Daniela Pinheiro: eis que a senadora sai de seu gabinete e enxerga uma terrível ameaça… Manifestantes? Adversários? Populares enraivecidos? Uma horda de repórteres? Pior, ao que parece: a apresentadora do programa Pânico na TV, Sabrina Sato. Bem, assessores sugeriram à heroína-Marina que mudasse de rota, ‘mas ela prosseguiu’. A pergunta era realmente impactante, arrasadora. Sabrina gostaria de saber ‘sobre políticas para tratar usuários de drogas’. A senadora fala e segue em frente. Eu, que jamais escaparia da apresentadora, penso que chegamos a isso: dividir políticos entre os que enfrentam e os que fogem de… Sabrina Sato.
Chesterton, Santo Agostinho e Shakespeare
Marina é religiosa ‘demais’ para ser presidente? Mais: sua conversão à Igreja evangélica poderia prejudicar sua candidatura? Daniela Pinheiro não só deixa a bola quicando para a senadora amenizar tal dúvida, como vai atrás de fontes que acomodem a situação. Ficamos sabendo, então, que Marina esteve muito doente, quase à morte – no melhor estilo Lula, o filho do Brasil, lemos um relato dramático dos angustiantes momentos vividos pela ex-ministra. Tudo para, claro, chegarmos à conclusão – reforçada por um entrevistado – que Marina se converteu à Igreja evangélica em função do trauma sofrido com a doença. Tudo muito bem explicado, portanto.
Quanto à defesa do criacionismo, a questão fica um pouco mais complicada. Afinal, a imagem que temos do pessoal que prega este tipo de ensino nas escolas é tirada de fundamentalistas dos grotões dos Estados Unidos. Marina não tem nada a ver com isso, pelo contrário, como logo se esclarece: ‘A ciência se faz pela multiplicidade de olhares’. Vejam bem, caros leitores, ciência e criacionismo não podem se misturar. Partem de pressupostos completamente diferentes e não deve haver quase nada mais interesseiramente político do que tentar unir as duas visões. Pois a jornalista, em frente a uma possível candidata ao Planalto que professa tal barbaridade, não se dá ao trabalho de aprofundar o questionamento.
Pois esta é a Marina Silva by piauí: uma criança que se nega a pronunciar ‘colher’ errado, uma erudita que cita Chesterton, Santo Agostinho e Shakespeare (mas que desconhece O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago), uma jovem que aprende matemática em uma noite e uma executiva que atende telefone, conversa e escreve ao mesmo tempo. E, claro, uma política que não teme Sabrina Sato.
******
Servidor público federal, Porto Alegre, RS