A República Federativa do Brasil sempre conviveu com rusgas deixadas pelo antigo regime. Sabemos que o Santo Ofício exerceu influência sobre a política e a mídia no ancien regime, durante séculos. Mas, o que vem ocorrendo atualmente chega a chocar e a causar inveja ao regime medievo. Temos assistido à preocupação da sociedade, de alguns parlamentares e setores da mídia, sobre a mistura perigosa entre religião, política e veículos de comunicação. No entanto, o que estes não têm mencionado, possivelmente para resguardar os direitos individuais e a liberdade de imprensa, ou até mesmo por desconhecer temas teológicos, é que o objeto religioso em questão não é qualquer um – trata-se de um grupo religioso semi-secreto, de caráter pentecostal e fundamentalista. Em suma: um grupo de fanáticos religiosos.
Não estou aqui a defender o uso da censura e/ou da perseguição religiosa. Só entendo que a nossa Constituição de 1946, por meio de uma emenda do então deputado federal pelo Partido Comunista chamado Jorge Amado, nos garantiu a liberdade religiosa, mas não confundamos liberdade com abuso. E o que temos visto está mais próximo deste do que daquela. Se a carta magna de 1946 nos garantiu a prerrogativa da liberdade religiosa foi visando a combater a perseguição religiosa. Não seria agora, em plena a vigência da Constituição-cidadã de 1988, que um cidadão que preze a liberdade e a igualdade iria propor a tese da limitação das liberdades religiosas e de imprensa.
Uma mensagem oriunda de Jesus
Só quero advertir que não devemos confundir as coisas; não devemos nunca confundir liberdade religiosa e de imprensa com abuso religioso e de imprensa. Esta advertência está sendo feita porque o que a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD – vem praticando há anos está mais para abuso religioso do que para liberdade religiosa. Primeiro, ela goza de isenção de impostos, mas é uma empresa de caráter privado com fins lucrativos e, como tal, deve ser regulamentada. Segundo, ela não tem escrúpulo para extrair dinheiro e bens dos seus seguidores e seguidoras. Tudo bem que ela poderá alegar que as pessoas doam livremente, mas é eloquente que os líderes desta instituição religiosa exercem uma técnica de assédio psicológico sobre os doadores e doadoras. Estes sentem-se impotentes diante da pressão psicológica. Se não cederem e doarem o que é exigido, acabam por se sentirem reduzidos ao nada diante da comunidade, e sem prestígio diante de Jesus, por não doar o que supostamente este estaria pedindo.
Penso que toda e qualquer atividade humana precisa de uma regulamentação, educação e submeter-se a legislações. Infelizmente, o que temos testemunhado são Igrejas afrontando as liberdades individuais e em nome de uma suposta divindade ultrapassam limites. Em nome desta entidade divina, as entidades religiosas têm desrespeitado claramente os direitos humanos, passando por cima dos códigos de leis e de imprensa, da Constituição do país etc. Algumas atitudes de serviçais da IURD atentam eloquentemente contra as liberdades individuais.
Um pequeno exemplo disto foi que aconteceu comigo no dia 30 de junho último. Nesta data, eu estava no terminal rodoviário do Guarujá, SP, junto com meu irmão Conrado e o meu primo Domingos, quando um serviçal da IURD se aproximou de nós oferecendo um panfleto. Fiz uso da minha liberdade individual de não receber o tal panfleto e o rapaz começou a me agredir moralmente, afirmando que jamais alguém poderia ter a petulância de rejeitar uma mensagem oriunda de Jesus Cristo. Eu pedi para ele respeitar a minha liberdade individual; o meu primo foi mais contundente com aquele moço, dirigindo-lhe algumas palavras não muito decorosas, as quais não poderão ser mencionadas aqui.
Globo também degenerou
Para finalizar, gostaria de reforçar o que o filósofo francês Tocqueville pensava sobre a liberdade de imprensa. Ele falava sobre a liberdade de imprensa que lhe parecia ter muitos inconvenientes, pois os jornais tendem a cometer abusos, sendo difícil evitar que degenere em licenciosidade. Acrescentava, porém, o que fez lembrar a fórmula de Churchill a propósito da democracia – de que só há um regime pior que a liberdade de imprensa, a suspensão destas liberdades. Nas sociedades modernas, a liberdade total é preferível à sua suspensão total. O mesmo também vale para a liberdade religiosa.
Mas nunca devemos pegar liberdade de imprensa e religiosa e colocarmos no mesmo balaio da degeneração e do uso promíscuo a fim de abusar da boa-fé ingênua das pessoas. Penso sim, como Tocqueville, que o espírito religioso deve estar unido ao espírito da liberdade. Mas penso que o filósofo de A Democracia na América jamais endossaria o abuso religioso e da imprensa.
Antes que alguém me acuse de estar tomando parte em defesa da Globo, gostaria de deixar bem claro que a Globo também degenerou quando apoiou o regime de exceção durante muitos anos.
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Professor, filósofo e educador, Fátima, BA