Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma nota sobre a “corrupção” da língua

Toda vez que coloco algum assunto relacionado à língua sem ditar ordens sobre como falar de maneira certa, as pessoas levantam uma dúvida pertinente (ou às vezes uma acusação injusta) sobre a corrupção da língua. Em outras palavras, elas acham que os que não são adeptos do purismo linguístico “aceitam tudo”, acham “certa” qualquer construção ou até são cúmplices com a fala “toda errada” do povo. E isso seria perigoso porque chegaria um tempo em que a língua portuguesa poderia desaparecer ou até atingir um estágio em que ninguém entenderia ninguém. Seria uma verdadeira incomunicação na língua. Para resolver esse “sério problema”, o “ideal” seria a língua ficar como está. Nesse caso, apenas os professores, os gramáticos, a Academia Brasileira de Letras, os escritores clássicos e alguns jornalistas iluminados teriam o direito de ditar como a língua deveria ser falada. No meu último texto nesse Observatório (“Campanha pelo bem do nosso português”), esse tipo de dúvida apareceu em 10 de cada 10 comentários. Acho uma boa oportunidade falar sobre o tema aqui.

Três prontos são necessários esclarecer antes de tratar do assunto propriamente dito. Em primeiro lugar, essas acusações são impossíveis de se concretizarem (e vou explicar mais abaixo o porquê). Depois, é bom lembrar que não existe essa coisa chamada língua em “si mesma”. O que existe são falantes da língua. Em outras palavras, não há uma caixa com uma “entidade” chamada língua (e suas regras estabelecidas) em algum lugar do Brasil (gramáticas normativas) e que é “utilizada” com o único objetivo de se comunicar com outras pessoas. Não. O que existem são pessoas reais dotadas de certas capacidades linguísticas que falam. Aliás, essa é a regra de ouro da linguística: só existe língua enquanto houver seres humanos que a falem. Uma língua morre quando não possui mais falantes nativos. Foi assim com o latim, o copta, o sânscrito, entre outras. Por fim, o termo corrupção vem carregado de uma conotação pejorativa e negativa: as pessoas que “falam tudo errado” seriam as responsáveis por adulterar, falsificar e alterar a “língua ideal” empregada por Machado de Assis, Camões e outros escritores da língua portuguesa.

Gramáticas e gramática

Mas a “boa nova” da “salvação linguística” é que esses pressupostos são baseados em mitos sobre o que é uma língua e o que significa empregá-la com naturalidade. E, da mesma forma que apontar para uma estrela não dá verruga, nem muito menos suco de abacate com leite dá morte na certa, a nossa língua não está em perigo de desaparecimento, incomunicação e mistura. E para entender o porquê, é bom começar do começo.

Celso Pedro Luft diferenciou perfeitamente a gramática da Gramática. Claro: ela vai além do “G” ser maiúsculo ou minúsculo. Por Gramática, entende-se a Gramática natural que todo falante emprega intuitivamente. Afinal, toda língua segue regras. Não existe nenhuma língua, nenhuma variante (nenhumazinha) que não siga algum tipo de norma. Nenhuma frase empregada por nativos da língua portuguesa pode ser construída sem estar prevista dentro dessa Gramática. Ela é quem verdadeiramente regula a língua. Antônio Houaiss afirma que uma pessoa que fala uma língua (ou qualquer variante dela) segue intuitivamente entre mil e mil e quinhentas regras. Ou seja, mesmo que você não consiga explicá-las ou descrevê-las, você está utilizando nesse exato momento esse número de regras para ler esse texto. Podem não ter consciência, mas qualquer falante da língua portuguesa sempre vai falar em uma ordem que traga o artigo (A), o substantivo (S) e o verbo (V). Ou seja, na frase “O menino correu”, o falante segue exatamente essa estrutura. E isso é uma regra, ok?

Já a gramática está relacionada à gramática normativa (ou suas outras “roupinhas”: norma padrão, norma culta etc.). Seu objetivo é fazer com que as pessoas “falem corretamente”. Por isso, apresentam um conjunto de regras relativamente explícitas e coerentes a fim de que os falantes a empreguem. Geralmente, quando se fala em língua, as pessoas associam logo a essa gramática. Mas ela é apenas uma tentativa artificial de reproduzir a parte mais visível e prestigiada da Gramática. Infelizmente, ainda impera, tanto na sala de aula quanto na imprensa brasileira, que essa gramática deve ser observada por todo aquele que queira falar ou escrever “certo”. Mas aí existe uma inversão histórica óbvia: é como se uma língua se construísse de dentro para fora (gramática para a Gramática), quando o processo se dá justamente ao contrário (Gramática para gramática). E na prática ela funciona da seguinte forma: em tese, essa gramática se baseia num modo peculiar de atividade linguística – a escrita – de um grupo seleto de cidadãos que fizeram uso dessas variantes prestigiadas no que costumam ser chamadas de obras clássicas. Em outras palavras, a sociedade elege – às vezes de maneira arbitrária ou baseada no que ela convencionou chamar elegante – uma variante linguística, torna-a padrão e em seguida passa a estigmatizar todo e qualquer falante que não siga aquela variação.

Os livro e menas

É possível dizer que não só o “acerto”, mas os “erros” na língua seguem regras. Claro: não estão prescritas nem são as mesmas regras da gramática normativa, todavia existe uma regularidade nesses desvios da norma padrão. Aquilo que a sociedade convencionou chamar de “erro” tem uma explicação lógica, cientifica e demonstrável. Qualquer “erro” cometido por falantes nativos segue regras gramaticais estritas. Por exemplo, você escuta Os livros e Os livro. Mas nunca (nunquinha) vai escutar O livros ou livros os ou ainda livro os. E por quê? Em primeiro lugar porque a Gramática portuguesa só permite Os livros e Os livro. Ela não permite outra estrutura (por isso as pessoas só empregam essas duas formas). Desafio qualquer purista a achar alguém que fale O livros, por exemplo. E essa “não permissão” se deve aos mecanismos de funcionamento da língua. Depois, os livro segue uma regra: plural marcado no artigo. As pessoas falam os livro, os carro, as banana etc. E quer gostemos ou não, são fatos. E contra fatos não há argumentos. Quer eu goste quer não, meu irmão de sete anos vai crescer. Quer eu goste quer não, pessoas falam os livros ou os livro.

O menas, que muita gente acha que não existe, também segue uma regra: só é falada diante de formas femininas como um adjetivo. Pode doer no seu ouvido, pode soar estranho ou pode você não gostar, mas menas confiança comigo tem uma regra: há uma concordância de gênero com o substantivo que se segue no feminino. Pode não estar de acordo com a gramática, mas para a Gramática ela é perfeitamente possível, lógica e coerente.

A língua anda muito bem das pernas

Diante disso e graças a Gramática, é impossível chegar um estágio em que não nos entenderemos mais. Não existe nenhum “caos” linguístico. O que há sempre são normas inconscientes que regulam esses usos. Nenhuma língua já foi ou pode ser corrompida, assassinada ou ameaçada quando faz algum empréstimo ou utiliza alguma variedade menos prestigiada (no caso, Os livro ou menas confiança). Neste exato momento, um homem com um carro de som sobe a rua da minha casa gritando que a rede custa dez real. O que os puristas me aconselham a fazer? Mandar o homem calar a boca? Chamá-lo de burro? Corrigi-lo ou entregar um Não erre mais de presente (presente de grego, no caso)? Pelo amor de Deus! O homem só está tentando ganhar a vida. Depreciando sua língua, deprecia-se o indivíduo, sua identidade, sua forma de ver o mundo, atingindo assim um dos maiores legados dele: seu linguajar. É com ela que esse homem trabalha, educa seus filhos, foi educado, estuda, compra, vende etc.

“Então, é aceitável dez real”? Ora, nesse caso essa pergunta é sem sentido. E principalmente quando se trata de pesquisa. Em qualquer outra ciência torna-se muito estranho (ou mesmo ridículo) perguntar a um químico se ele aceita que o oxigênio queime, ou a um físico se ele aceita a gravitação… ou mesmo a um linguista se ele aceita que o falante possa dizer Os livro. Ou seja, não se trata de aceitar ou não, de achar correto ou não. São fatos: vários falantes nativos (que são quem de fato regula a língua) utilizam os livro. Ninguém comente “erros” ao falar sua própria língua materna, da mesma forma que ninguém comente erros ao respirar, andar ou escutar. Só se erra naquilo que é aprendido: álgebra, violão, informática etc. Mas a língua materna não é um saber desse tipo. Ela é adquirida desde o útero e prossegue conosco até nossa descida ao túmulo.

Sendo assim, podem dormir tranquilos: a língua portuguesa anda muito bem das pernas. E não é graças à gramática, mas graças a Gramática e aos falantes que a empregam diariamente.

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[Bruno Ribeiro Nascimento é graduado em Comunicação Social (Rádio e TV) pela UFPB, João Pessoa, PB]