Em jornalismo, há títulos que podem valer pelo corpo inteiro da matéria e bem o sabem os cronistas ou os historiadores do assunto. ‘Matou a mãe sem motivo justo’, manchete publicada há cerca de meio século por um jornal carioca, vale até hoje como obra-prima de humor negro. Pode-se escrever um pequeno tratado com exemplos dessa natureza, em que se põem à prova a precisão, a concisão e a originalidade do jornalista encarregado de capturar a atenção do leitor. Trata-se de uma arte que, na França, motivou há muito tempo a criação do Prêmio Louis Rameix, destinado a recompensar no meio profissional o melhor título do ano.
Não raro, sem os grandes fogos da originalidade ou dos efeitos emocionais provocados, há títulos que valem por sua força de síntese conceitual. É o caso de ‘Humor só amanhã. Hoje é História’, título de um artigo de Eugene Robinson, colunista do Washington Post, reproduzido pelo Globo. Discorrendo sobre como tem sido ‘terrível’ para os comediantes a eleição de Barack Obama, toma como exemplo Don Rickles, que ‘praticamente inventou o estilo de humor descarado, politicamente incorreto, que é o alimento de tantos comediantes hoje’. Pois bem, Rickles, segundo a coluna, estava matando o público de rir no programa de David Letterman – até tentar contar uma piada sobre o presidente eleito. Como é fato muito conhecido que Obama gosta de jogar basquete, o comediante o imaginou, ‘enfrentando sua primeira crise internacional, dizendo a assessores que não poderia ser interrompido porque estava ocupado jogando basquete’. Ninguém riu, a piada falhou.
Por quê?
Lua-de-mel protetora
A resposta comporta uma teorização, resumida no título. É que a piada aciona o estereótipo, tipicamente americano, ‘negros jogando basquete’. Todo estereótipo é uma espécie de condensação emocional que essencializa ou naturaliza traços atribuíveis a um grupo social, fazendo passar a idéia de que os indivíduos daquele grupo são necessariamente assim ou assado.
A idéia de que todos os negros jogam basquete, implícita no estereótipo, converte em ‘natureza’ (logo mitifica, nos termos em que Roland Barthes definia ‘mito’ em suas Mitologias) o que é uma característica parcial (nem todos os negros jogam basquete) e histórica, ou seja, em determinado momento da vida americana, predominam negros nas equipes de basquete.
O público não aceitou o estereótipo porque Obama ainda é história ‘quente’ demais para ser semioticamente transformado em fria natureza. Ainda que o cidadão Barack Obama adore jogar basquete, é cedo demais para se congelar a imagem do presidente eleito no esquema fechado do clichê. ‘Humor só amanhã. Hoje é História’: o título de Eugene Robinson (ou de quem editou a matéria) contém toda essa argumentação, mas deixando claro que não vai durar para sempre ‘a lua-de-mel que preserva Obama do ridículo do fim da noite’. Amanhã será outra história.
Amanhã será outra história
De fato, nenhuma personalidade está a salvo do humor crítico, especialmente em um país, como os Estados Unidos, em que faz parte da tradição publicista a criação de anedotas, caricaturas e imitações de líderes políticos. Na verdade, porém, não se trata apenas dos Estados Unidos, mas de todo o Ocidente, na trilha dos antigos gregos que, ao lado da filosofia, ciência e artes, se dedicavam à criação e circulação de piadas.
Um despacho da agência Reuters, publicado na Folha de S.Paulo, dá conta da descoberta de Filogelos, um dos livros de piadas mais antigos do mundo, datado de 1.600 anos atrás. Uma delas: um homem reclama que um escravo que ele acabara de comprar estava morto. ‘Pelos deuses’, replica o vendedor. ‘Quando estava comigo, ele nunca fez uma coisa dessas!’
O jornalismo contemporâneo é indissociável dessa arte que, guardadas as diferenças, se aproxima das vanguardas artísticas do início do século passado, voltadas para acabar com as hierarquias intelectuais por meio de metáforas, jogos de palavras, às vezes à beira do bestialógico. Foi assim, por exemplo, o dadaísmo, sobre o qual André Gide se manifestou: ‘Dada é o dilúvio após o qual tudo recomeça’.
As pressões do politicamente correto e as virtuais ações de danos morais são ameaças de hoje ao pleno jogo dessa arte bem assimilada pelo jornalismo. Mas, como vaticina o título de Eugene Robinson, nada detém em termos definitivos a força do risível e amanhã será outra história.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro