Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vale a pena ser jornalista?

Vale a pena ser jornalista? Eu me fazia essa pergunta enquanto soldados norte-americanos me arremessavam dentro de um carro na fronteira do Iraque. Dois militares me pegaram pelos braços, outros dois pelas pernas e, sem gritar, como se fosse um trabalho de rotina, como se fossem educados, disseram: ‘Desaparece’. Era junho de 2003 e essa era a minha segunda tentativa frustrada de entrar no país, em menos de três dias.

Havia esperado por horas, no meio do deserto, sob um calor de mais de 40 graus, lutando contra a ansiedade e as moscas, com o intuito de chegar a Bagdá. Só na terceira tentativa, alguns dias depois, consegui entrar no Iraque. Entre as crateras das bombas que marcavam o caminho até a capital, tentava responder qual era, afinal de contas, a utilidade dessa profissão.

Quando adolescente, acreditava que o jornalismo seria um dos caminhos para mudar, radicalmente, o mundo. Mas nasci depois dos anos 60 e cresci com a imagem do Muro de Berlim sendo destruído e essa coisa de revolução foi ficando fora de moda, apesar de as injustiças sociais – de norte a sul – terem se agravado. Dizem por aí que a ditadura caiu, que vivemos numa democracia e que tudo, a partir de então, deve ser feito de ‘maneira mais madura e civilizada’. A ditadura se foi, é certo, mas isto que a substitui está longe de ser uma democracia (no sentido original) e muitos dos que mandavam antes continuam mandando agora, sempre sem nenhuma ‘civilidade’.

Fatos e versões

Comecei a pensar sobre ‘civilidades e democracias’ quando pisei pela primeira vez num acampamento do MST. Só então, naquela visita, percebi o poder de manipulação da grande mídia. Pouco do que via e percebia daquela realidade correspondia à imagem midiática do Movimento. A mesma distorção dos fatos, em menor ou maior escala, testemunhei como repórter em 2001, na maior manifestação contra a globalização já vista, que reuniu mais de 200 mil pessoas em Gênova. Igualmente em Ramallah, 2002, durante a operação militar israelense ‘Escudo Defensivo’, que culminaria com o massacre de Jenin – fato silenciado pelos meios de comunicação. Assim também, em 2003, no Iraque ocupado, e, recentemente, na guerra do Líbano. Era sempre muito inquietante perceber que as notícias do dia – em muitíssimos casos – não correspondiam aos fatos que eu havia presenciado na véspera.

Parte dessa distorção reside num dado bastante simples: alguns jornalistas ainda não descobriram que o lado mais fascinante da história não acontece nos palácios ou nos discursos oficiais. Acontece principalmente nas ruas. Ao cobrir um conflito armado, por exemplo, o ideal seria estar em todos os fronts, ouvindo todas as versões, como se aprende na primeira lição de jornalismo na universidade. É, todo mundo aprende, mas muitos esquecem e escolhem apaixonadamente um único front e ali permanecem grudados como o marisco na rocha. É o front do poder, o mais cômodo e mais seguro.

Eu não teria testemunhado o assassinato de uma senhora palestina, uma civil, por um soldado israelense, se estivesse acomodado num confortável hotel em Jerusalém, lendo e reproduzindo os releases enviados pelo governo de Israel. Ela foi executada na minha frente, quando saía de um hospital em Ramallah. Levou dois tiros, um na testa e outro no peito. Isso acontece com freqüência naquela região, não é novidade, mas é espantoso como alguns colegas insistem em reproduzir as versões oficiais sem qualquer investigação séria. Isso que chamam de ‘imparcialidade jornalística’, muitas vezes, nada mais é do que cumplicidade com o poder.

Silêncio militante

Além de ter posição e deixar isso claro ao leitor, o jornalismo em que acredito deve saber costurar os fios de uma história, descrevê-la da forma mais objetiva possível e contextualizá-la. Por que quando se fala sobre o MST se omitem dados importantes para entender a questão da luta pela terra? Por que quase nunca se menciona que, dos 5 milhões de proprietários rurais, apenas 26.000 –menos de um por cento do total – são donos de 46% de todas as terras do Brasil? Por que nunca se diz que o acesso à terra era livre no Brasil até 1850, quando foi elaborada uma lei com o objetivo preciso de impedir o acesso a ela dos trabalhadores pobres? Por que quase nunca se menciona que o MST já alfabetizou 22 mil pessoas e mantém 2.000 escolas que empregam 4.000 educadores? A quem interessa esse silêncio militante?

Então, chegamos a uma das raízes desse silêncio e ela diz respeito à nossa concepção de democracia. O jornalista norte-americano Walter Lippmann, autor do livro Public Opinion, escrito em 1922, tinha uma concepção de democracia bastante atual. Lippmann foi um dos mestres das relações públicas e figura proeminente da primeira grande ação de propaganda de um governo moderno, coisa que levou o povo norte-americano a apoiar a I Guerra Mundial. Para Lippmann, a democracia é um regime deficiente porque o povo, basicamente uma ‘horda primitiva’, não tem condições de saber o que é melhor para o bem comum. Por isso, é preciso que essa ‘horda’ seja conduzida por uma elite de homens racionais. Essa elite – e apenas ela – tem condições de julgar o que deve ser permitido ou rejeitado.

Para que isso funcione, em uma democracia, é preciso fabricar consenso, construir idéias e valores que sejam assimilados, aceitos e seguidos. E o consenso é criado por meio da propaganda que, na maior parte das vezes, não se apresenta como tal, mas como informação, por meio do jornalismo. Enquanto isso, a ‘horda’ deve ser entretida e deve pensar, assistindo a eleições e outros truques, que possui alguma importância. A concepção de democracia de Lippmann é a que existe no Brasil e em muitos outros países.

O norte-americano Noam Chomsky aborda esse tema no livro A Manipulação dos Media – Os Efeitos Extraordinários da Propaganda (Editorial Inquérito, 2003) e traz uma definição lapidar: ‘A propaganda está para uma democracia como o cassetete está para um Estado totalitário.’ Mas, quando a ‘horda primitiva’, quando esse ‘rebanho tolo’, por um motivo ou outro, se organiza e se rebela, é preciso revitalizar o Estado policial, utilizar o cassetete e criminalizar o rebanho. Para o poder não existe nada pior do que a junção de pobreza, consciência política e disposição para a luta. É o que acontece com o MST e, em muitos aspectos, é o que ocorre nos movimentos contra a globalização e na questão palestina.

Outras fronteiras

O problema de fundo, como constatou o incansável Fausto Wolff, é que ‘os novos jornalistas passaram a ver a realidade sob a sua perspectiva burguesa de classe média. O povo deixou de ser importante, deixou de ser o ator principal para tornar-se figura, coadjuvante, presunto. Em compensação, o jornalista deixou de ser o herói marginal para tornar-se uma espécie de poodle de divã, uma espécie de office-boy do poder…’ Ou seja, chegamos a tal ponto que boa parte dos jornalistas já não precisa ser seduzida pelo poder. É cúmplice do poder sem ter consciência porque faz parte do rebanho tolo.

Para completar, vivemos num país onde a informação é controlada por meia dúzia de famílias. Essa concentração se torna ainda mais dramática pelo fato de que, segundo pesquisa divulgada pelo Ibope em setembro de 2005, 68% da população brasileira é considerada analfabeta funcional. E, se não bastasse, ainda temos um Poder Judiciário acostumado a separar a lei da justiça, a transformar vítimas em réus e vice-versa. A censura imposta à revista Observatório Social, a condenação do jornalista Lúcio Flávio Pinto e do cientista social Emir Sader mostram que ainda é muito arriscado contrariar, em alta voz, os interesses da nossa elite. Conforme estudo da organização Repórteres Sem Fronteira (RSF), ‘a imprensa brasileira, sobretudo a local, continua sofrendo graves represálias quando se mostra curiosa demais’. É por isso que o Brasil ocupa a 75ª posição no ranking que mede a liberdade de imprensa.

Ainda assim, vale a pena ser jornalista? Vale, se tivermos ânimo para ultrapassar as fronteiras proibidas, fronteiras bloqueadas pela censura, pela ignorância, pela mentira. Vale, se tivermos os olhos bem atentos, para ver o delicado, o diferente, o invisível. É preciso coragem para se comprometer, para dizer o que se vê e o que se sente, sem medos nem manuais. Só vale a pena ser jornalista se for – como cantou Torquato Neto – para ‘desafinar o coro dos contentes’.

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Mestre em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, Portugal.