Na vida estamos sempre cruzando com gente que está longe de ser agradável, exemplos de caráter e integridade, mas que faz sucesso e bota banca por ser competente no que faz. É aquela velha história, quando se tem vocação, talento, perseverança e aquela mãozinha da sorte, até o feio vira bonito, o chato de galocha um príncipe. Como se diz no dialeto popular, burro carregado de açúcar, até o fundilho é doce. Daí o mulherio que chove na roça da moçada mal-ajambrada, os arroubos louvaminheiros de e a notórias malas sem alça do meio artístico, esportivo e midiático em geral.
Figurinhas carimbadas (eventuais objeções ou adesões à lista, cartas à redação) como os afetados João Gilberto, Lulu Santos, Ed Mota, vossas majestades Roberto Carlos e Pelé, o agora tribuno Romário, os histriônicos Galvão Bueno, Milton Neves, José Luiz Datena e seu avatar, Marcelo Rezende, comentaristas ranhetas como Renato Maurício Prado, Mário Sérgio e Neto, só para citar alguns ególatras e marrentos de carteirinha. Lista que não seria completa sem a turminha do ramo, é claro, pois não há bicho mais metido a besta do que jornalista, mas cujos nomes prefiro declinar para não ser injusto com os… preteridos.
São os tais que se acham, ou eventualmente até são, os reis da cocada preta, e que mesmo impagáveis e intragáveis, são incensados e até idolatrados como suprassumo do onírico universo do showbiz. Cuja propensão a mistificação e a mitificação, torna difícil, quase inviável, separar o joio do trigo, o diamante do falso brilhante. Daí a charlatanice e a canastrice que nos são impingidos sob as mais diversas roupagens.
Pataquadas e patacoadas nesse sentido não faltam. Como o livro autobiográfico-memorialista-pastiche Fala, Galvão (Editora Globo) em que o narrador televisivo mais famoso do país, nascido Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno, em parceria com o jornalista e editor-chefe do Sport TV, Ingo Ostrovsky, malgrado o enfoque humilde e despojado, pavoneia-se à tripa forra no papel de protagonista e testemunha privilegiada dos mais importantes eventos esportivos dos últimos 40 anos. Mercê do posto de narrador chefe da emissora líder absoluta de audiência no país, a Rede Globo. Um alentado trololó de 310 páginas, que poderia muito bem ser resumido a um terço disto, para que, subtraídos os capítulos laudatários de fazer inveja a revista Caras, sobrasse algo aproveitável sob o ponto de vista jornalístico.
Saltimbanco profissional
Digo algo aproveitável porque, sejamos francos, é preciso muita boa vontade para tirar algum proveito de um relato que vai no mesmo estilo de quem se diz um vendedor de ilusões, não obstante a conotação farsesca e circense inerente a função. Como curiosidade, um tributo a personagens que fizeram história no futebol e no automobilismo, com os quais conviveu e faz questão de ressaltar o vínculo de fraternal amizade, o livro não só entrega a mercadoria prometida como exagera tanto nos salamaleques e rapapés que chega a dar engulhos. Sobretudo os inúmeros e pachorrentos relatos de regabofes e confraternizações entre celebridades que só servem para enfatizar o lado glamuroso da coisa e matar de inveja os barrados do baile. Já para quem, incautamente, nutre a expectativa de encontrar em suas esfuziantes reminiscências algo mais substancial jornalisticamente falando, não desperdice tempo e dinheiro, pois em que pese o inegável traquejo adquirido em tantas anos de estrada, trata-se de uma narrativa em que acima de tudo, usa e abusa do assumido feedback de saltimbanco profissional.
Não vai aí nenhuma má vontade ou implicância com o conhecido estilo histriônico e boquirroto de nosso mais importante narrador, que com sua inegável competência a 33 anos (seu tempo de Globo) reina absoluto no picadeiro dos circos mais populares e charmosos do planeta – o futebol e a Fórmula 1. O problema, a frustração com o livro é justamente ele não exorcizar e sequer disfarçar antigas restrições e pecados imputados a uma linha editorial sabidamente superficial e mercantilista. E da qual comunga com fervor religioso, como se denota em várias passagens em que revela obediência e subserviência até constrangedoras para alguém com seu prestígio. O preço à pagar para trabalhar na Globo, imagina-se.
Falta de criticismo
O que para ele parece ser um mero e insignificante detalhe – a tal fidelidade canina as mequetrefes diretrizes da casa –, para um público mais atento e exigente não deixa de ser altamente decepcionante e desabonador, em se tratando de alguém que gosta de cantar de galo e se arvorar como referencial no meio jornalístico. Como se a abdicação de uma abordagem mais crítica à necrosada estrutura de nosso futebol, não estivesse diretamente vinculada ao acentuado desgaste e rejeição que vem sofrendo. A ponto de a partir da Copa de 2010, quando o brado de “Cala boca, Galvão”, virou refrão na internet, usufruir de uma espécie de semi-aposentadoria dos sonhos, sendo escalado apenas nos eventos mais importantes, além do automobilismo, no que realmente continua imbatível.
É muita cara de pau de quem escreveu a orelha do livro afirmar que Galvão se notabiliza por opiniões fortes, não ficar em cima do muro, quando é justamente o contrário. Ora, que mérito jornalístico há num livro que ignora os funestos efeitos da famigerada Lei Pelé, que praticamente terceirizou a administração dos clubes a empresários e patrocinadores? Que não faz qualquer menção ao sistema feudalista que se perpetua no comando da CBF, que faz e desfaz sem prestar contas a ninguém, como se fosse um país à parte, uma ditadura a bem dizer?
Uma falta de criticismo ao que tudo indica proposital, por tratar-se de um regime que convém a Globo – o que, aliás, não é nenhuma novidade –, e cuja longevidade e preservação é referendada na forma da malfada política do escambo. Ou seja, vistas grossas e imunidade ao próspero balcão de negócios em que se transformou a entidade, em troca da manutenção do monopólio global nas transmissões dos certames mais importantes. Não é à que o nome do ex-presidente e atual eminência parda da entidade, Ricardo Teixeira, é mencionado apenas en passant no livro, e nem isto em relação Bom Senso Futebol Clube, o movimento dos jogadores cuja pauta de reivindicações não bate com os interesses da emissora. O que explica porque nem o assunto e muito menos seus líderes dão as caras seja na confraria do Bem, Amigos, como na extensa grade do Sport TV.
Indulgente autojustificativa
Tal postura, grosseiramente reticente e convenientemente displicente em relação aos problemas crônicos de nosso futebol, paira como uma espécie de marca registrada de uma hegemonia exercida com inegável presteza e eficiência por seus dedicados profissionais. Que como Galvão não se cansa de destacar, batem o escanteio e correm para cabecear, como se diz no jargão futebolístico, no afã de assegurar o que é mais sagrado para a emissora: o topo da audiência. Com direito a eventualmente vender gato por lebre, tapar o sol com a peneira, como na recente Copa do Mundo, a começar pela conivência com a verdadeira romaria que se instalou na concentração da Granja Comary. Cujo trânsito franqueado de tietes, parentes, celebridades, agentes, patrocinadores e afins, Galvão tardiamente reconhece ter impedido a seleção de desfrutar um mínimo de privacidade para a realização dos treinos táticos e ajustes que se faziam necessários.
São águas passadas, é verdade, mas intercorrências graves que devem ser sempre lembradas, para que não se repitam no futuro. O que se sabe muito difícil, em função das regalias contratuais de que gozam os patrocinadores, e do assédio do próprio setor midiático, que como Galvão deixa claro, é capaz de vender a alma ao diabo para garantir preciosos pontinhos na audiência. E sobretudo, não esquecer das causas da pasmaceira que se abateu sobre a seleção, no colossal vexame que a bem dizer botou no chinelo o desastre do Maracanazo, 64 anos atrás.
Quase um ano depois, de cabeça fresca, Galvão faz breve e correto diagnóstico do que faltou à época. Já sobre a funambulesca cobertura que comandou, mais uma vez tira o corpo fora e se limita a contar detalhes de bastidores inerentes as transmissões e boletins, encher a bola de seus pares, e apesar dos pesares, fazer um balanço positivo do evento, baseado no sucesso da organização e principalmente, na receptividade calorosa da população. Sem nenhuma referência aos excessos da cobertura e aos equívocos de avaliação sobre o real potencial da seleção. No máximo, a evasiva e indulgente autojustificativa com que fecha o econômico capítulo dedicado a Copa, inserido à última hora e sem acrescentar ao livro nada que já não se soubesse, e que justificasse a postergação de seu lançamento para após o evento.
“Eu sou o animador da festa, o cara que chama o Oludum em Salvador, a festa no Anhangabaú, os bonecos de Olinda, que mostra as praias do Rio, mas na hora do jogo eu tenho que andar no fio da navalha. Tenho a realidade de um lado e a minha obrigação de vender emoções de outro. Nesta Copa do Mundo talvez tenhamos passado do ponto. Porque chorar tanto? Ninguém estava indo para a guerra…”
Ruptura de paradigmas
Logo ele, o grande porta-voz das emoções dos brasileiros, como exalta o pressuroso prefaciador do livro –, ninguém menos do que um dos que o narrador mais enaltece, o ex-fenômeno Ronaldo Nazário –, mas que, inteiramente voltado e obcecado pelos números da audiência, em nenhum momento se preocupou em baixar a bola, em refrear a euforia. Não se tocou ou ignorou, como bom prestidigitador, que toda aquela empolgação, a comoção inoculada pela cantoria do hino à capela, a evocação da pátria de chuteiras, enfim, o clima de histeria coletiva que decretou a substituição de um enfoque mais crítico e realista pelo tom de camaradagem e cumplicidade que campeou nas transmissões, não eram condizentes com a realidade de uma seleção tecnicamente limitada, e taticamente negligenciada. E que o estímulo e a adesão a ilusória empolgação reinante, afrontavam princípios jornalísticos básicos como equilíbrio e bom senso. Princípios relegados a segundo plano em nome de interesses mercadológicos e hegemônicos que tem tudo a ver com a duvidosa fama da Globo e sua trupe de menestréis de luxo.
Razão pela qual, inevitável não associar a premente e radical reformulação que se impõe no futebol brasileiro a uma reciclagem da própria mídia esportiva. Como mantenedora e provedora dos recursos que irrigam o futebol, compete a ela restituir aos clubes a autossuficiência e a dignidade sonegadas ao longo do tempo, por força da legislação que transferiu o controle de seu principal ativo (os atletas) a empresários e espertalhões de toda natureza; e sua sobrevivência ao escravizante aporte financeiro oriundo da televisão. Por televisão, entenda-se Rede Globo, que por conta do velado conluio com a CBF a que me reportei acima, mantém os clubes no cabresto graças a penúria que indiretamente ajuda a disseminar.
Motivo mais do que suficiente para a revisão e revogação desse estado de coisas, mediante a ruptura dos paradigmas que mantém os clubes submissos ao poderio econômico de provedores e patrocinadores que, ao contrário do que acontece nos grandes centros europeus, lhe destinam migalhas do bilionário mercado que exploram.
Um mercado que comporta o pagamento de um salário de R$ 5 milhões mensais a um mero locutor – digo mero sem desdouro, mas por haver outros igualmente qualificados na própria Globo –, poderia, deveria, tem a obrigação de ser muito mais generoso com os verdadeiros protagonistas do maior espetáculo do planeta. Tudo bem que nosso futebol anda tão por baixo que nunca dependeu tanto da turbinada da mídia como atualmente, mas daí ao absurdo de o animador-mor do espetáculo embolsar quase o mesmo que os dois clubes de maior torcida, Flamengo e Corinthians, recebem anualmente pelo direito de transmissão de seus jogos, algo em torno de R$ 60 milhões, das duas, uma: ou a Globo pirou ou está nadando em dinheiro.
No fio da navalha
Como todo mundo sabe a resposta, os clubes que deixem de ser trouxas e corram atrás do que lhes está sendo sonegado. Afinal, como se costuma dizer, as pessoas passam mas os clubes ficam. Daí a incoerência de supervalorizar o material humano, que é transitório, substituível, em detrimento da instituição, que é a razão de ser do futebol. O que se aplica não só aos profissionais da mídia, como a suicida política salarial praticada por nossos clubes, razão principal do descalabro financeiro que enfrentam, verdade seja dita.
Não se trata de questionar o direito da Globo de valorizar e remunerar regiamente seu vasto e exímio quadro de profissionais, mesmo porque, como disse logo de início, a competência costuma falar mais alto do que as aparências. A questão, parafraseando o famoso dito de Disraeli, é que competência quando é muita, vira bicho e engole o dono. E Galvão, como ele próprio admite, talvez pelas quatro décadas de estrada e as habilidades de prestímano que desenvolveu, tem abusado do direito de andar no fio da navalha.
Parece ter perdido a noção do risco que representa, sobretudo para a própria reputação, misturar o real com o imaginário, manipular as emoções das pessoas. Pendor que trescala de seu livro a ponto de fazer de sua leitura um exercício de paciência e estoicismo. Como não posso pedir que se cale, como fez o rei de Espanha com outro célebre falastrão, o falecido Hugo Chávez, fica aqui a minha calorosa exortação:
– Vaza, Gavão!
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Ivan Berger é jornalista