As teses positivistas de Cesare Lombroso já não encontram respaldo na criminologia moderna. Não cabe mais, felizmente, falar de portador de patrimônio genético causador de criminalidade – uma espécie de subtipo humano, resquício patológico de estágio primitivo. Por isso, crime como expressão de anomalia morfológica é descartado na psiquiatria forense. Para algumas publicações semanais, porém, as teses do médico e pesquisador italiano parecem fazer sentido.
Certamente haverá, nas redações de Veja e Época, profissionais sérios que se sentem objeto de forças emancipadas de seu arbítrio e decisão. Determinadas características somáticas das famílias proprietárias permitem antever em que momentos surgirão reportagens editorializadas, distorcendo falas e ocultando fatos. Este determinismo editorial é produzido pela conjugação de dois fatores: a lei do valor e os vínculos orgânicos dos donos dos veículos com a elite liberal-conservadora.
A qualquer custo
Estamos longe de ver o campo jornalístico como instância de intermediação. O que temos, principalmente em períodos eleitorais, é uma prática autoritária de empresas que precisam maximizar seus lucros, mantendo os velhos sócios de projeto de poder. Pluralidade e diversidade, em sociedade fracionada como a brasileira, na qual o arremedo de democracia liberal mal consegue esconder a política enfeudada pelo mercado, não passam de estratégias de marketing editorial. O que vale é o consenso fabricado. A colonização continuada do imaginário de parcela da classe média. Para tanto, a pauta condiciona apuração, redação e edição. Não há, pois, procedimentos gratuitos.
Se para Lombroso, de forma grosseira, a predisposição criminosa estava na cara, em Veja e Época, publicações que perdem a credibilidade para não perder os “amigos” de classe, o crime está na capa. Não há qualquer preocupação com sutilezas que ocultem o real móvel das matérias. Não existem motivos para se esconderem atrás de enquadramentos sutis. As duas revistas não têm leitores: reúnem, principalmente a primeira, militantes. E é para eles que o protofascismo de um Diogo Mainardi ou de um Reinaldo Azevedo soam como sinfonia. Além de fazê-los se sentirem portadores de uma cultura imaginária.
Mas se o crime está na capa, o que nos informam as publicações que estão nas bancas? Tanto a Abril como a Globo, em capas semelhantes, mostram quem é o seu candidato. Aquele que deve ser blindado a qualquer custo. Ao contrário de outras edições, a empreitada não é desconstruir Lula, mas formatar o candidato tucano para o leitor. Estetizá-lo para quem já o escolheu. Reinventá-lo para quem está indeciso. É ourivesaria que não consta de nenhum manual de redação. É matéria, crônica e opinião, tudo misturado, como em restaurante a quilo.
Roteiro amável
Olhar severo, sorriso contido, Alckmin surge na capa da Veja (edição 1.977, de 11/10/2006) sobre um sugestivo “O desafiante” como chamada. O pomposo título – “O fenômeno Alckmin” – e a matéria obedecem à marcha batida dos Civita: não esconder intenções ou negacear apoios que possam ferir preceitos éticos caros à imprensa. O trecho a seguir foi extraído da matéria assinada por Marcelo Carneiro e Camila Pereira. Notemos que, quando um texto jornalístico se esmera em juízo de valor, duas coisas se fazem ausentes: juízo e valor.
Ao qualificar a agenda do candidato tucano como positiva temos, por antinomia, que seu oponente ou não tem nenhuma ou ela é negativa para o Brasil. Melhor, impossível. Lembrando que a cobertura do “dossiêgate” foi assimétrica na apuração do conteúdo, é importante frisar que a “arrogância” de Lula é uma formulação da revista. Uma percepção subjetiva transformada em anátema. Chamamos a isso jornalismo?
E o roteiro continua:
Aqui o procedimento discursivo tende a “humanizar” o estilo do candidato: centralizador e capaz de iniciativas que ignoram formalismos hierárquicos. Estamos longe de um simples relato. Trata-se de construção ideológica. É a mídia exercendo o seu papel de ator político. Operando na centralidade que, paradoxalmente, pode lhe trazer, em curtíssimo prazo, severos revezes. Em suma, estamos falando da Veja e do DNA de uma das famílias mais importantes do baronato midiático. O campo jornalístico e l’omertà nele existente seriam de grande interesse para o Dr. Cesare.
Nada de bom
Época, “que só podia ser da Globo”, convida o leitor a um devaneio. “Como seria o Brasil de Alckmin” é a chamada da capa. A matéria assinada por David Friedlander, Guilherme Evelin e Leandro Loyola é um primor de desfaçatez. O trecho a seguir é outro exemplo de prestidigitação pobre. Todo mundo vê o coelho e a cartola furada. Mas ouvem-se aplausos consentidos.
Inédito exercício de futurologia está embutido em “de Lula já se sabe o que esperar”. Caberia aos jornalistas escrever o que há de tão previsível em um segundo mandato do atual presidente. Algo a que nem analistas políticos conceituados se aventuram de forma categórica. A menos que a conotação negativa da expressão tenha servido para editorializar o texto. No caso, para ser mais explícita, a formulação correta seria: “Já se sabe que não se deve esperar nada de bom”.
Clãs decididos
Outro trecho é emblemático para mostrar o caráter propagandístico da matéria.
O que seriam essas “mudanças estruturais no Estado”? Se o ex-governador guarda alguma coerência ideológica com o programa de seu partido e com a própria gestão à frente de São Paulo, é preciso destacar que é de minimização e desmonte que estamos falando. Não vejam críticas ao candidato nessa conclusão. É apenas constatação de que faltou pesquisa na elaboração da matéria. Se há algo nem um pouco imprevisível é o desdobramento econômico de uma eventual vitória tucana. De Alckmin, depois de cinco anos de governo estadual, já se sabe bem o que esperar. E a família Marinho, a mais poderosa do ramo, espera com ansiedade.
L’uomo delinquente foi publicado em 1876 e teve forte influência no Direito Penal. Resta saber se a ação da mídia, nos últimos meses, não deslocará seu foco para estudos centrados na comunicação de massa. Afinal, estamos lidando com alguns dos mais respeitáveis clãs do país. Gente que não costuma hesitar.
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Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro