Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Veja

ELEIÇÕES 2006
Roberto Pompeu de Toledo

A armadilha e o mito

“O Brasil está enredado numa armadilha. Essa armadilha se chama Luiz Inácio Lula da Silva. Um governo apanhado com a mão na massa* como nesse episódio do dossiê contra seus adversários teria necessariamente seu chefe submetido a processo de impeachment em países onde vigore um mínimo de ordem constitucional e de respeito pela lei penal. Foi o que ocorreu com Richard Nixon nos Estados Unidos. Foi o que ocorreu com Fernando Collor no Brasil. É o que não ocorrerá com Luiz Inácio Lula da Silva.

Lula tem um invencível escudo a protegê-lo: a popularidade. Não se fazem processos contra presidentes no vazio político. Tanto Collor quanto Nixon só foram destituídos depois que as escoras políticas que os sustentavam, a popularidade em primeiro lugar, desmoronaram. Lula continua contando com ambiente político favorável. Freqüentemente se diz que a oposição errou ao não ter avançado um processo de impeachment lá atrás, no ponto alto do escândalo do mensalão. A oposição não errou. Não se atira com arma de tal calibre contra um presidente que tem a escora do povo, sob pena de fazer um mártir que, fora do governo, teria o poder de infernizar o país mais do que dentro. Eis a armadilha em que o Brasil está enredado: Lula, por ação ou por omissão, pode continuar a cometer seus desmandos, que o país está impedido de puni-lo.

Tem-se atribuído a popularidade de Lula a razões que vão das benesses do Bolsa Família à desinformação da maioria da população. É mais que isso. Lula não é um político. Não é nem mesmo uma pessoa. É um mito. É o retirante nordestino e operário metalúrgico sem um dedo que virou presidente, discursa na ONU e passeia de carruagem com a rainha da Inglaterra. Vá se derrotar um mito! Vá se querer destituir Hércules depois de ele ter cumprido os doze trabalhos! Vá se desafiar Teseu depois de ele ter derrotado o Minotauro!

Os que implicam com ele dizem que Lula deveria ter aproveitado o longo tempo ocioso que teve entre o abandono do torno mecânico e a posse na Presidência para estudar. Santa ingenuidade. Lula sabia que, se assim fizesse, estaria assacando contra o mito. Um Lula com diploma de advogado, falando inglês ou mesmo, mais singelamente, sabendo concordar o sujeito com o verbo, em português, não valeria metade do Lula que fala errado e tem como maior requinte intelectual as metáforas com o futebol. Seria mais um, como Juscelino ou Brizola, que começou de baixo e virou doutor. A construção do mito exigia a distância dos livros e o sacrifício da concordância verbal.

Lula foi igualmente sábio ao desprezar, depois de uma malsucedida candidatura ao governo de São Paulo e uma obscura passagem pela Câmara dos Deputados, qualquer cargo que não fosse a Presidência. A construção do mito também exigia um salto. Tinha de sugerir o movimento, vertiginoso como o de um foguete, irreal como o do sapo que vira príncipe, da condição de retirante à glória da Presidência. Degraus no meio do caminho amorteceriam a surpresa, para não falar no desgaste que os inevitáveis aborrecimentos em cargos menores poderiam trazer.

Mitos também morrem, é verdade. Mas, no caso do mito Lula, não há sinal do mínimo desgaste. Pelo contrário, sua posição nas pesquisas, num quadro de quase permanente estado de crise no governo, indica que está forte como nunca. Há quem especule com a hipótese de vir a querer um terceiro mandato, por meio de uma reforma constitucional que, à Chávez, revogue o limite de dois mandatos consecutivos. Talvez seja exagero. Mas, se tiver paciência para esperar quatro anos fora do poder, quem diz que não ressurgirá, vigoroso, aos 69 anos, na eleição de 2014? E que, vitorioso, parta para a reeleição em 2018, aos 73? O Brasil é culpado pela criação do mito. Não fossem suas mazelas, a começar pela pobreza e pela desigualdade, ele não encontraria terreno propício para prosperar. Agora, vê-se embrulhado na armadilha que o mito continha.

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Suponhamos, contra todas as evidências, que Lula não seja eleitoralmente tão forte. Suponhamos, contra o que indicam as passadas experiências, que desta vez o escândalo o engolfe, e que venha a perder a eleição. Ainda assim, o mito será forte o suficiente para fazer nascer um líder da oposição capaz de empalidecer o desempenho de Carlos Lacerda nesse papel. Imagine-se o que pode aprontar Lula, à frente de sua formidável equipe de sabotadores e caçadores de dossiês, contra o ocupante do Planalto que tiver a audácia de derrotá-lo. Imagine-se seu poder de incendiar o país, uma vez restituído ao posto de maestro da CUT e do MST. Vale a pena ver Lula derrotado? Quando se chega a cogitar que, pior do que com ele, pode ser sem ele no poder, aí se tem a idéia do tamanho da arapuca em que o país está enredado.

* ‘Massa’, por especial cortesia às autoridades e respeito às donzelas, vai em lugar da palavra antigamente chamada de ‘palavra de Cambronne’, hoje mais identificável como ‘palavra de Paulo Betti’.”

Diogo Mainardi

IstoÉ, a mais vendida

“Fim de agosto. Base aérea de Congonhas. Lula se encontra com Domingo Alzugaray, dono da IstoÉ. O encontro está fora da agenda presidencial. Alzugaray se lamenta dos problemas financeiros da revista. Sabe como é: salários atrasados, contas penduradas com o fornecedor de papel e com a gráfica. Lula pergunta como pode ajudá-lo. Alzugaray sugere o pagamento imediato de uma série de encartes encomendados pela Petrobras. Valor total: 13 milhões de reais. Lula promete se interessar pelo assunto. Duas semanas depois, a IstoÉ publica a matéria de capa com os Vedoin, incriminando os opositores de Lula.

Quem relatou o encontro confidencial entre Lula e Alzugaray foi o editor da sucursal brasiliense da IstoÉ, Mino Pedrosa. E quem o relatou a mim foi o PFL. Creio que seja verdade. Creio em tudo o que contam de ruim a respeito de Lula. O que posso garantir é que a imprensa lulista funciona assim mesmo. O presidente manda. O jornalista publica. O contribuinte paga. Aborreci um monte de gente para tentar descobrir se a IstoÉ foi socorrida pela Petrobras nas últimas semanas. Ninguém soube me dizer. Os gastos em publicidade da Petrobras competem somente a ela mesma. O presidente manda. O jornalista publica. O contribuinte paga. Mas nunca fica sabendo onde foi parar o tutu. É o esquema perfeito. A IstoÉ foi acusada por seu próprio editor de ter vendido a matéria de capa com os Vedoin. Quem forneceu o dinheiro? Meu conselho é perguntar ao diretor de marketing da Petrobras, Wilson Santa Rosa. Ele é homem da CUT, como muitos dos que foram pegos em flagrante nessa trama golpista. E é amigo de José Dirceu. Sempre desconfio de quem é da CUT e amigo de José Dirceu.

Um dos principais petistas implicados na compra de matéria da IstoÉ foi Hamilton Lacerda. Ele era coordenador da campanha de Aloizio Mercadante. Foi afastado depois de admitir que negociou a entrevista com os Vedoin. O repórter Ricardo Brandt descobriu que Lacerda ‘atuou como intermediador de contratos da Petrobras com órgãos de imprensa’. Esses fatos esclareceriam o que aconteceu desde o encontro de Lula com Domingo Alzugaray na base aérea de Congonhas até hoje. Lacerda era o responsável pela propaganda eleitoral de Mercadante. A produtora que faz a propaganda eleitoral de Mercadante é a VBC. VBC… VBC… O nome é familiar. É a mesma VBC que se meteu no escândalo do lixo de Marta Suplicy? É a mesma VBC que produziu farto material de propaganda da Petrobras, incluindo um documentário de três horas sobre o Pantanal? Sim. É a mesma VBC. Esse é o único lado bom do PT: seus enredos criminosos sempre fecham. Tanto que, nesse episódio da matéria da IstoÉ, já apareceram pessoas envolvidas com Celso Daniel, valerioduto, diretoria do Banco do Brasil, ONGs do Ministério do Trabalho, contratos de publicidade, Delúbio Soares, sanguessugas. De um jeito ou de outro, tudo se encaixa. Tudo remete a Lula e a José Dirceu.

Lula ainda pode se eleger. No segundo turno. Se ele for eleito, cedo ou tarde seu mandato será cassado. Porque sua campanha usou dinheiro ilegal. Nos últimos anos, peguei no pé dos jornalistas alinhados com o PT. Foi burrice minha. A imprensa lulista é o melhor produto nacional. Primeiro derrubou Antonio Palocci. Agora vai derrubar Lula. Alguém aí quer me comprar?”

Alexandre Oltramari

O vôo cego do petismo

“O escândalo do dossiê, no qual uma dupla de petistas foi flagrada comprando por quase 2 milhões de reais um conjunto de denúncias contra tucanos que não valia um centavo, abriu uma crise gravíssima e imprevisível. Gravíssima porque logo se descobriu que os envolvidos têm laços com a campanha reeleitoral do presidente Lula e com a própria instituição da Presidência da República. Do círculo íntimo do presidente, entre confessos e suspeitos, está Freud Godoy, seu segurança pessoal até a posse e depois nomeado assessor especial, que dormia no Palácio da Alvorada nos primeiros meses do governo e tem sala no mesmo andar do gabinete presidencial no Planalto. Também está Jorge Lorenzetti, o churrasqueiro oficial dos domingos na Granja do Torto e tutor informal de Lurian, a filha mais velha de Lula. Do círculo político, mas nem por isso menos íntimo, está o deputado Ricardo Berzoini, presidente do PT e, até a semana passada, coordenador da campanha reeleitoral de Lula, defenestrado pelo escândalo. Está Osvaldo Bargas, amigo dos tempos de militância sindical nos anos 70, responsável pelo capítulo sobre trabalho no programa de governo – e casado com Mônica Zerbinato, secretária particular de Lula.

A crise é também imprevisível nos seus desdobramentos porque, ao revelar laços de tamanha gravidade com a mais alta autoridade da República, joga uma sombra sobre o futuro. O caso está sendo investigado pelo Tribunal Superior Eleitoral e, teoricamente, pode resultar na impugnação da diplomação de Lula, caso seja reeleito, ou estimular a instalação de um processo de impeachment pelo Congresso Nacional – na hipótese de se comprovar que a campanha do presidente cometeu abuso de poder econômico ou político na compra ou montagem do dossiê contra os tucanos (veja reportagem). ‘É algo muito, muito pior que o Watergate’, chegou a dizer o ministro Marco Aurélio Mello, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, referindo-se ao escândalo de espionagem de adversários que, nos Estados Unidos, em 1974, levou o presidente Richard Nixon à renúncia. Mello já se mostrara perplexo com a impressionante multiplicidade de ações irregulares patrocinadas pelo governo e seu partido.

A situação é tão complexa que, desta vez, até os petistas de couro grosso acusaram o golpe. Acusaram talvez de uma maneira mais aguda do que no auge do escândalo do mensalão. Numa das reuniões ocorridas no Palácio da Alvorada, chegou-se a cogitar até a alternativa extrema. Para mostrar que nada tem a temer e que defende a mais ampla investigação do caso, mas evitar que sua campanha desande, Lula pediria licença do cargo, entregando o comando do país ao senador Renan Calheiros, e passaria a dedicar-se exclusivamente à reeleição. A idéia, apresentada pelo ministro Tarso Genro, chegou a ser debatida, mas foi descartada pelo presidente.

Com receio de que os estilhaços da crise possam comprometer a reeleição de Lula, o Palácio do Planalto deflagrou uma operação de guerra. A idéia é empenhar-se ao máximo para que Lula vença o pleito já no primeiro turno. Os petistas, com o próprio presidente à frente, consideram desastrosa a possibilidade de que haja segundo turno. ‘Se houver, serão três semanas de bombardeio, no auge da investigação sobre o dossiê e todos os candidatos derrotados apoiando o Alckmin’, prevê um petista de alto coturno, que participou de todas as reuniões sobre a crise com o presidente. Por isso, os partidos aliados foram acionados para dar apoio público ao presidente e os movimentos sociais, nunca antes tão claramente atuando como linha auxiliar do governo e do petismo, fizeram um manifesto em defesa de Lula. A tática – de novo, de novo – é dizer que Lula não sabia de nada e que, estando com folgada vantagem nas pesquisas, também não teria interesse algum em atacar adversários. Na lógica petista, portanto, tudo aconteceu por obra de maus perdedores. ‘Temos de levar em conta a quem interessa, a essa altura do campeonato, melar o processo eleitoral no Brasil’, disse Lula, durante viagem a Nova York.

Respondendo:

1) Um dossiê devastador contra José Serra interessaria ao PT em São Paulo. Seria ótimo para Lula ter um governador petista em São Paulo em um segundo mandato.

2) Disparar um tiro de morte contra Serra significaria exterminar praticamente o PSDB em nível nacional.

3)’Melar’ o processo eleitoral não interessa a nenhum democrata, mas sobre essa questão seria mais útil perguntar aos seus colaboradores íntimos que entraram na fria de comprar um dossiê com dinheiro sujo.

O problema do discurso oficial é a afronta aos fatos. O castelo – de Lula, do PT, da reeleição – começou a tremer num episódio cujos autores são todos petistas. Tudo começou na sexta-feira, 15 de setembro, quando agentes da Polícia Federal prenderam dois petistas que negociavam o tal dossiê no hotel Ibis, em São Paulo. O empreiteiro Valdebran Padilha, filiado ao PT de Mato Grosso há dois anos, representava a família Vedoin, comandante da máfia dos sanguessugas e fornecedora do dossiê. O outro petista preso, encarregado de analisar a relevância das informações do dossiê e fazer o pagamento, era Gedimar Passos, contratado pela cúpula do PT. Os dois carregavam 1,7 milhão de reais, cuja origem está sob investigação (veja reportagem). O pacote apreendido pela PF incluía uma agenda, seis fotografias, uma fita de vídeo e um DVD de 23 minutos, em que os tucanos José Serra e Geraldo Alckmin aparecem entregando ambulâncias. Era um pacote fajuto, sem relevância, mas incluía a concessão de uma entrevista de Luiz Antônio Vedoin, capo dos sanguessugas, envolvendo Serra no esquema. Na mesma sexta-feira, a revista IstoÉ chegou às bancas com uma entrevista de Vedoin atacando Serra – acusações que, na semana passada, ao ser interrogado pela PF, Vedoin desmentiu.

CLIMA DE DESCONFIANÇA

Darci, o pai, e Luiz Antônio, o filho: a família Vedoin queria vender o dossiê, mas estava desconfiada de que poderia levar um calote do PT

Com a prisão de Valdebran Padilha e de Gedimar Passos e a tomada de seus depoimentos, descobriu-se o envolvimento de petistas mais graúdos – e, em apenas três dias, deflagrou-se um dominó de demissões que afetou outros seis petistas, atingiu a campanha de Aloizio Mercadante em São Paulo, engolfou a campanha reeleitoral de Lula e subiu a rampa do Palácio do Planalto. A cronologia é fulminante:

• Na segunda-feira, caiu Freud Godoy, assessor especial de Lula. Ele fora acusado por Gedimar Passos de ser o mandante do pagamento pelo dossiê. Freud Godoy nega.

• Na terça-feira, caiu Jorge Lorenzetti, churrasqueiro de Lula e chefe do bunker de bruxarias eleitorais do comitê. Ele é acusado de contratar Gedimar Passos.

• Na quarta-feira, as demissões chegaram ao auge. Caíram Ricardo Berzoini, coordenador da campanha de Lula, e Osvaldo Bargas, que trabalhava na elaboração do programa de governo. Mencionada no caso, a revista Época divulgara no dia anterior uma nota informando que Jorge Lorenzetti e Osvaldo Bargas ofereceram um dossiê contra os tucanos a seus repórteres – e que Berzoini sabia da conversa, mas não do seu conteúdo. Caiu, também, Expedito Veloso, diretor do Banco do Brasil que estava licenciado e trabalhava pela reeleição de Lula. Ele é um dos suspeitos de ter levado o dinheiro do dossiê ao hotel Ibis em São Paulo. Por fim, caiu Hamilton Lacerda, secretário de Comunicação da campanha de Mercadante. A revista IstoÉ diz que Lacerda fora o primeiro a lhe oferecer o dossiê fajuto.

Uma parte dos bastidores da negociata está documentada pela PF, que monitorou os telefonemas de Luiz Antônio Vedoin, o vendedor do dossiê, entre 9 e 15 de setembro. Nos dois dias que precederam a negociata, a polícia captou 36 diálogos, aos quais VEJA teve acesso (veja a reprodução de alguns deles). As gravações mostram que tudo girava em torno do dinheiro, embora a palavra seja cuidadosamente evitada. É curioso que, dos seis petistas envolvidos no caso depois das duas prisões em São Paulo, todos, à exceção de Freud Godoy, tenham admitido algum tipo de envolvimento com o caso – mas nenhum deles, muito menos Freud Godoy, admite ter qualquer relação com o dinheiro, ainda que, no passado recente, ele tenha sido o guardião dos dinheiros clandestinos que circulam nos desvãos do PT (veja reportagem). ‘Afirmo taxativamente que em momento algum autorizei o emprego de qualquer tipo de negociação financeira’, diz Lorenzetti na nota em que anuncia sua demissão. ‘É importante informar que em nenhum momento houve qualquer oferta de dinheiro’, repete Hamilton Lacerda, o ex-auxiliar de Mercadante, na sua nota de afastamento. Antes de cair, Berzoini fez o mesmo discurso numa entrevista. ‘O PT não tem nenhuma atividade que envolva recursos financeiros para compra de informação’, disse. A falta de conexão com a realidade dos petistas é preocupante: eles não conseguem mais enxergar nem mesmo um bolo de dinheiro vivo no valor de 1,7 milhão de reais.

O ex-agente Gedimar Passos (à esq.) e, atrás dele, o empreiteiro Valdebran Padilha: com a queda deles, começou o dominó de demissões de petistas

O escândalo do dossiê comprova que a ‘organização criminosa’, para usar as palavras do procurador-geral da República, refinou um método para reagir aos flagrantes da bandidagem. Assim como no escândalo do mensalão, agora também a primeira reação foi de negar qualquer envolvimento com o caso. ‘O PT não faria isso em hipótese alguma’, chegou a dizer Berzoini dois dias antes de ser ele próprio apanhado no esquema. A outra tática é montar um cordão sanitário em torno do presidente Lula, dizendo que, se houve algo, ele não sabia de nada. Foi assim no mensalão. É assim agora. ‘É uma crise normal, que não atinge em nada o presidente’, diz o ministro Tarso Genro. Até entre setores da oposição, admite-se a hipótese de que, desta vez, Lula talvez não soubesse mesmo dos detalhes – da existência do dossiê ou do pagamento de 2 milhões de reais. Admite-se que talvez tenha sido apenas informado de que uma bomba contra Serra estava sendo armada e que sua explosão poderia catapultar Mercadante ao segundo turno no pleito paulista.

Isso não isenta Lula de responsabilidade legal. É altamente provável que Lula soubesse que, no seu comitê reeleitoral, havia um bunker clandestino – repetindo, aliás, a estrutura montada na campanha presidencial de 2002. Uma reportagem de VEJA, publicada em outubro de 2003, mostrou como funcionava esse núcleo, que operava na defesa de Lula e no ataque aos adversários. Lula sabia de sua existência e, durante a conversa que selou sua criação, ainda recomendou: ‘Seja inteligente. Não faça nada de manuel ou joaquim nessa história’. O coordenador do grupo era Ricardo Berzoini e um dos operadores era Osvaldo Bargas, o velho amigo do movimento sindical. O outro dado que complica a situação de Lula é a constatação de que nunca um presidente se cercou de tanta gente suspeita – seja como presidente, seja como candidato. No escândalo do mensalão, Lula perdeu seus principais auxiliares políticos. Agora, o caso atinge gente de sua intimidade. Com isso, fica cada vez mais difícil alegar que são nichos isolados, independentes, autônomos, que se instalam na máquina do Estado sem o conhecimento do presidente. É o contrário: tudo indica que, com a eleição de Lula, o aparelho estatal foi tomado de assalto por seus asseclas cevados no banditismo partidário-sindical.

Além de se cercar de tantos suspeitos, Lula parece afastar-se deles quando são pilhados em alguma malandragem apenas de forma protocolar. No caso do mensalão, justificou a existência de caixa dois no PT. Passado o auge do caso, chegou a receber os mensaleiros no Palácio do Planalto, aos quais recomendou que não se sentissem culpados porque não haviam feito nada de essencialmente errado. Despediu-se de seus principais ministros caídos com afagos, elogios e promessas de irmandade eterna. Com esse comportamento, Lula acaba servindo como sinal verde, como autorização tácita para que atos clandestinos e irregulares sejam cometidos. Desde o primeiro rombo no casco ético de seu governo, quando se soube que o braço-direito do então ministro José Dirceu fora flagrado achacando um empresário de jogos, o presidente Lula teve todos os meios para limpar seu governo, higienizar seu palácio e promover uma faxina no PT. É lamentável que nunca tenha feito nem uma coisa nem outra. Deixou, assim, que o PT, mais uma vez, mergulhasse seu governo e o país nos recônditos de uma crise sem solução fácil.

OS GRAMPOS DA NEGOCIATA

Entre os dias 9 e 15 de setembro, quando deflagrou a operação que implodiu a negociata da compra do dossiê, a Polícia Federal monitorou o celular número 9208-6507, de Luiz Antônio Vedoin, o capo da máfia dos sanguessugas. Só nos dois dias que precederam a operação a PF captou 36 telefonemas de Luiz Antônio Vedoin, aos quais VEJA teve acesso. Do outro lado da linha, entre os personagens já identificados, estavam seu pai, Darci Vedoin, Valdebran Padilha, petista que intermediou a venda do dossiê ao PT, e Expedito Afonso Veloso, diretor do Banco do Brasil que negociou a compra do material em Cuiabá e São Paulo. A seguir, seis trechos de diálogos que mostram o clima de desconfiança mútua em que os criminosos conversavam:

‘ALGUMA COISA TÁ TRAMADA’

Quarta-feira, 13 de setembro, 11h53

Neste diálogo, Darci Vedoin conversa com seu filho Luiz Antônio, ambos envolvidos no esquema dos sanguessugas. Eles estão desconfiados dos petistas que querem comprar o dossiê contra os tucanos. Estranham que a entrevista à imprensa será dada em Cuiabá, os documentos serão entregues em Cuiabá, mas o pagamento dos 2 milhões de reais só será feito em São Paulo. Na conversa, desconfiados, pai e filho discutem até desistir da negociata:

Luiz Antônio – Ligar agora e voltar atrás, também não. Vamos deixar do jeito que tá. Se não, voltar atrás, aquela conversalhada tudo de novo, voltar à estaca zero… Aí os caras vão abusar de nós daqui a pouco…

Darci Vedoin – Isso é verdade. Mas eu tô com um certo receio. Porque alguma coisa tá tramada em cima disso. Se tu pensar um pouquinho, não tem por que eles (refere-se aos petistas) virem até aqui… Por que não sair (com o dinheiro) de lá (referência a São Paulo)?

‘CHEGA. NÃO SOU MOLEQUE’

Quinta-feira, 14 de setembro, 14h18

O diálogo aqui é entre o petista Valdebran Padilha, que está em São Paulo, e Luiz Antônio Vedoin, de Cuiabá. Valdebran está negociando a venda do dossiê ao PT em nome dos Vedoin. Na conversa, Valdebran insiste para que Luiz Antônio Vedoin entregue uma fita que deveria compor o dossiê. Luiz Antônio, com receio de levar um calote, resiste a entregar a fita:

Valdebran – Olha, o negócio já tá rodando, mas ficou um negócio de vocês entregar aí.

Luis Antônio – O que é?

Valdebran – É uma fita. Uma fita bruta que aparece você e mais não sei quem. Entrega logo esse trem…

Luiz Antônio – Amigo, só vou entregar a hora que entregar o negócio aí (refere-se ao dinheiro). Chega. Não sou moleque. Não vou mais fazer papel de palhaço, não, cara.

Valdebran – Eu tô com o cara aqui. Ele tá com o negócio (nova referência ao dinheiro).

Luiz Antônio – Quê?

Valdebran – Tô com o cara aqui . Ele tá com o negócio. Tamo aqui junto.

Luiz Antônio – Hã?

Valdebran – Aquela outra parte já guardei onde tinha que guardar (refere-se à metade do dinheiro que já tinha recebido, no caso 798 000 reais e 109 800 dólares). A outra parte tá aqui com ele (refere-se ao restante do pagamento, que estava em mãos de Gedimar Passos, no caso 410 000 reais e 139 000 dólares). Entrega esses trem aí, o cara tá aqui comigo, rapaz.

Luiz Antônio – Não vou entregar. Eles iam entregar ontem, não entregaram, né?

‘JÁ DERAM A METADE’

Quinta-feira, 14 de setembro, 14h50

Aqui, Valdebran, falando de São Paulo, informa Luiz Antônio, que estava em Cuiabá, de que metade do dinheiro já havia sido paga e que vira a outra metade a ser paga. Fala em código, mas Luiz Antônio demora a entender:

Valdebran – A outra metade já tá viabilizada (refere-se ao restante do pagamento). O que você vai fazer aí?

Luiz Antônio – Em qual sentido você tá falando?

Valdebran – Quem tá sendo mediador dessa p… sou eu. Nem é a turma que está aí (refere-se aos petistas que estavam em Cuiabá).

Luiz Antônio Vedoin – Sei…

Valdebran – É o seguinte: era um, né?

Luiz Antônio Vedoin – Hã…

Valdebran – Então 0,5 tá o.k. Aí, o outro 0,5, para cinco horas da tarde aqui (em código, diz que metade já foi paga e outra metade será paga às cinco da tarde em São Paulo). Vocês têm de fazer a parte toda de vocês aí.

Luiz Antônio Vedoin – Mas quanto que é?

Valdebran – É um, não é?

Luiz Antônio Vedoin – Não!

Valdebran – Ô, meu jovem…

Luiz Antônio Vedoin – Ah, entendi.

Valdebran – Entendeu? Já deram a metade. A outra metade tá aqui com eles. Já vi. Então, tem de entregar esse trem logo aí, cara…

Luiz Antônio Vedoin – Daqui a pouquinho. Pode ser?

Valdebran – Rápido, cara.

‘NÃO VAI TER PROBLEMA’

Quinta-feira, 14 de setembro, 16h27

Neste diálogo, Luiz Antônio Vedoin conversa com Expedito Afonso Veloso, diretor de Gestão de Risco do Banco do Brasil. Ambos estão em Cuiabá. Expedito Veloso, que estava embarcando para São Paulo, pede que Luiz Antônio leve até o aeroporto o DVD prometido. Pede rapidez porque, antes de embarcar no avião, queria rodar o DVD em seu notebook. Luiz Antônio, que entregaria um DVD vazio, faz corpo mole, de modo que Expedito Veloso embarque sem checar o material:

Expedito – Oi.

Luiz Antônio – Expedito?

Expedito – Oi

Luiz Antônio – Em dez minutos, eu tô chegando aí na frente do aeroporto. Me espera aí na frente, tá?

Expedito – Pois é… Eu queria checar…

Luiz Antônio – Checa, ué… Por quê? Tem algum problema?

Expedito – Não… Mas eu achei que (você) ia vir mais cedo para a gente colocar pelo menos no notebook aqui e ver…

Luiz Antônio – Você leva isso aqui. Não vai ter problema.

Expedito – É porque o tempo tá muito curto. Falta meia hora…, quer dizer…, o embarque já tá começando.

Luiz Antônio – Você leva isso aqui. Não vai ter problema.

Expedito – Tô te esperando aqui.

Luiz Antônio – Tá bom.

‘MINHA CABEÇA TÁ PRA ESTOURAR’

Quinta-feira, 14 de setembro, 19h07

Ao desembarcar em São Paulo, Expedito Veloso, diretor do BB, descobre que o DVD estava vazio. Luiz Antônio Vedoin não lhe entregou o material todo porque tinha receio de não receber o dinheiro. Deu-se, então, o seguinte diálogo entre Valdebran e Luiz Antônio.

Valdebran – Rapaz, você não sabe o tamanho do problema que eu tô com ele aqui.

Luiz Antônio – Que que houve?

Valdebran – Os caras me ligaram aqui. Falaram que o DVD não tem nada, que você não entregou as fotos, que não entregou as anotações, que não entregou nada pra eles. Aí eu tô com o caboclo aqui na minha porta.

Luiz Antônio – Como que não, cara? Eu vi. Eu entreguei pra eles.

Valdebran – Tá dizendo que não rodou nada. Vou falar procê, minha cabeça tá pra estourar já, cara.

Luiz Antônio – Faz o seguinte. Quer que eu pegue um vôo e entregue pra você hoje onze e meia da noite? Esses caras tão enrolando demais, pelo amor de Deus, cara.

Valdebran – Agora tô com dois cara aqui na porta aqui, pô!

Luiz Antônio – O que você quer que eu faça?

‘PELO AMOR DE DEUS, EU NÃO AGÜENTO MAIS’

Quinta-feira, 14 de setembro, 19h37

De São Paulo, Valdebran Padilha tem outra conversa com Luiz Antônio Vedoin. Nela, Luiz Antônio informa que vai mandar seu tio, Paulo Trevisan, para São Paulo com todo o material que faltava. É com base nessa conversa que a PF prende Paulo Trevisan no aeroporto de Cuiabá, quando tentava embarcar para São Paulo. É também neste diálogo que os agentes descobrem que Valdebran estava no apartamento 475 do hotel Ibis  e que estava com dinheiro no cofre:

Valdebran – Oi. Anota o apartamento aí. Ibis, 475. Olha, cara. Nao deixa faltar nada, tá. As fotos… Sabe o que eu tive de fazer? Desmontar tudo os pacotes, colocar tudo naquele cofre do quarto e guardar lá (…). Pelo amor de Deus, cara, eu não agüento mais, não tô nem dormindo com esse trem lá. Hoje eu nem saí daqui, nem almocei, bicho.”

Juliana Linhares e Camila Pereira

‘Pior do que o Watergate’

“Com a instauração do processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) destinado a investigar a responsabilidade de Lula e assessores no dossiêgate, a crise do governo salta do patamar político para o institucional – e, do alto desse novo degrau, a paisagem que se avista não parece nada tranqüilizadora. O processo foi aberto a pedido de um bloco formado por políticos do PSDB e do PFL. Na representação, a coligação alega que Freud Godoy, Gedimar Passos e Ricardo Berzoini, assessores do presidente e do candidato Lula, cometeram crimes de abuso de poder econômico ao utilizar dinheiro não contabilizado para fins eleitorais – o 1,7 milhão que seria empregado na compra do dossiê contra José Serra. A acusação se estende a Valdebran Padilha, empresário e filiado ao PT. Além disso, a representação afirma que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, cometeu crime de abuso de poder político ao não permitir a divulgação da imagem desse dinheiro. O candidato Lula entra no processo por dois motivos: por ter sido, segundo a representação impetrada pela coligação, o principal beneficiário dos dois supostos ilícitos eleitorais (de abuso de poder econômico e de poder político, ambos previstos em lei complementar à Lei de Inelegibilidades) e porque sua situação se enquadraria no segundo parágrafo do artigo 30-A da Lei Eleitoral. Diz o trecho da lei: ‘Comprovados captação ou gastos ilícitos de recursos para fins eleitorais, será negado diploma ao candidato, ou cassado, se já houver sido outorgado’. É essa lei que, segundo especialistas ouvidos por VEJA, mais riscos oferece a Lula. ‘Como já se sabe que ao menos a parte em dólares do dinheiro usado para a compra do dossiê entrou no Brasil de forma clandestina, o ilícito já está configurado’, afirma Alberto Rollo, especialista em legislação eleitoral. ‘Obviamente, há que esperar o final do processo para considerar alguém culpado’, acrescenta ele. Desde já, no entanto, os petistas estão com os nervos à flor da pele. O novo coordenador da campanha de Lula, Marco Aurélio Garcia, teve momentos de histeria ao longo da semana, quando, por meio da imprensa, acusou o ministro Marco Aurélio Mello de dar declarações ‘com conotação partidária’.

O processo no TSE leva, no mínimo, trinta dias para ser concluído, considerando-se os prazos que a lei estabelece para que os acusados juntem documentos, reúnam testemunhas e apresentem a sua defesa. É, portanto, impossível que se encerre até a semana que vem, quando ocorre o primeiro turno das eleições, e improvável que esteja concluído até 29 de outubro, data marcada para um eventual segundo turno. Isso não significa, no entanto, que Lula possa se livrar das conseqüências de uma condenação. Se, como presidente, ele pode tentar ‘descolar-se’ dos escândalos demitindo os companheiros envolvidos, como candidato não tem saída. Atos administrativos não o eximem de suas responsabilidades.

A lei é clara quando diz que, comprovado o uso de dinheiro ilícito na campanha, o candidato – ainda que já eleito – terá o seu diploma cassado. Em outras palavras: se Lula vencer as eleições e, depois de empossado, for considerado culpado pelo tribunal, perderá o mandato, assim como seu vice. Novas eleições serão convocadas e o petista ficará inelegível por três anos. Antes disso, há a possibilidade de recurso. Lula pode apelar para o Supremo Tribunal Federal alegando inconstitucionalidade na decisão do TSE. Caso o STF viesse a conceder o efeito suspensivo da sentença, não haveria novas eleições e o presidente continuaria no cargo, pelo menos até o julgamento do mérito do recurso – o que poderia levar anos.

Lula, obviamente, também pode ser absolvido no processo do TSE. Mas, se eleito, assumirá um governo que dará a largada sob o peso de um monumental passivo ético – resultado da soma de escândalos que pontuaram toda a segunda metade do seu mandato. Para especialistas, esse desgaste terá reflexos diretos na governabilidade. ‘Com o PT em frangalhos para articular alianças na Câmara e no Senado, e a oposição acirrando o embate político, os ventos não estarão favoráveis para Lula como estiveram no primeiro mandato, quando ele conseguiu ampla maioria em votações importantes para o governo’, analisa o cientista político Rubens Figueiredo. Esse ambiente desfavorável, na opinião de especialistas, tornaria praticamente inviável a votação de reformas importantes, como a tributária e a da Previdência. Por terem impacto direto nas finanças do governo – e no bolso da população -, elas exigem um presidente forte e com cacife político para ser aprovadas. Se esse presidente for Lula, antecipa o presidente do PSDB, Tasso Jereissati, ele não contará com o apoio dos tucanos na tarefa. ‘Depois de toda a gastança feita para ganhar a eleição, espero que ele não queira que nós o ajudemos a pedir sacrifícios à sociedade’, diz.

Um Congresso hostil ao governo vai dificultar a votação de medidas. ‘Se isso ocorrer, Lula deverá usar um número cada vez maior de medidas provisórias’, diz o promotor Thales Tácito, especialista em legislação eleitoral. Fora do jogo partidário, acredita-se que o passivo ético que Lula carrega deve reforçar seu perfil populista e dificultar a relação do petista com os setores mais esclarecidos da sociedade. ‘Toda vez que é cobrado e criticado, Lula volta à cantilena das elites golpistas, da imprensa golpista e apela para a sustentação entre as massas e os movimentos sociais’, afirma Roberto Romano, filósofo da Unicamp. Atiçar a população mais carente, beneficiária direta da bilionária caridade oficial, é uma saída a que Lula poderá recorrer para tentar blindar-se contra uma eventual ameaça de impeachment – fantasma que continuará a assombrá-lo em um provável segundo mandato. A ele e ao país, infelizmente.

Com reportagem de Renato Piccinin”



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