O caso Lara Logan levantou o debate sobre a inadequação da função de correspondente de guerra ao gênero e aparência – obscurecendo o fato de que mais de 140 jornalistas homens foram agredidos. Eis o limite social da beleza: o seu risco. Como as mulheres podem experimentar a autonomia laboral e do seu corpo sem que isso seja um aval de domínio e agressão? Mas, afinal, por que associamos a beleza feminina a um risco iminente? Como essa associação surgiu e por que ela ainda faz sentido nos dias de hoje?
Há uma violência contra a mulher pouco discutida: contra a sua beleza. Um caso emblemático aconteceu, recentemente, durante a queda do ditador Hosni Mubarak no Egito com a agressão sexual da correspondente da emissora norte-americana CBS, Lara Logan. Trata-se de um fato complexo atravessado por diversas motivações. Podemos levantar algumas: o comportamento de massa – o homem em grupo age com uma agressividade e uma noção de impunidade que não o teria isoladamente [tal comportamento é muito bem descrito no artigo ‘Psicologia das Massas e Análise do Eu’ em uma interpretação de Freud ao trabalho de Le Bon. ‘O indivíduo que faz parte de um grupo adquire, por considerações numéricas, um sentimento de poder invencível que lhe permite render-se a instintos que, estivesse ele sozinho, teria compulsoriamente mantido sob coerção. Ficará ele ainda menos disposto a controlar-se pela consideração de que, sendo um grupo anônimo e, por consequência, irresponsável, o sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos, desaparece inteiramente’ (LE BON; FREUD, 33)]; o antiamericanismo dos muçulmanos e, claro, uma visão negativa da mulher ocidental, rejeitando a sua liberdade que se traduz em seu modo de vestir e se comportar. Do ponto de vista ocidental: a inveja e competição profissional (caso dos comentários do jornalista Nir Rosen e da radialista Debbie Schlussel); atitude anti-muçulmana, tratando os agressores como ‘selvagens’ sem controle; a noção da mulher como um ser frágil e inadequada para certos trabalhos e a beleza como um fator de risco. [Mesmo que jornalistas, homens, tenham sido agredidos e assassinados durante o conflito. Estima-se que 140 repórteres foram vítima de violência durante a cobertura dos protestos no Egito desde o dia 30 de janeiro, afirma a ONG americana Comitê para a Proteção dos Jornalistas. Dois brasileiros estão entre eles.]
A mulher no plano dos sonhos
Dessas importantes questões que vieram à tona com o episódio, uma delas não foi devidamente esclarecida. Por que a beleza é um risco para a mulher? Por que essa noção de inadequação da função de correspondente de guerra ao gênero e aparência foi colocada à prova – obscurecendo o fato de que mais de 140 jornalistas homens foram agredidos? Dentre eles o jornalista da BBC, Assad El Sawey que foi espancado com barras de aço. E, o caso fatal: o repórter Mohammed Mahmoud, 36 anos, ferido à bala enquanto fotografa a multidão da sacada de sua casa. Vale enfatizar sua origem, egípcio, o que enfraquece a tese dos comentários de ser ela uma estrangeira inocente na zona de conflito. Todos os jornalistas que participam de zonas de conflito têm a dimensão do risco físico que correm e seriam independentemente de serem homens ou mulheres, incapazes de reagir à violência física de uma multidão.
A carreira da jornalista Lara Logan é também um dado importante para compreender o fato. ‘Aos 39 anos, a sul-africana Lara Logan é uma jornalista respeitada. Desde 2006 é chefe dos correspondentes internacionais da CBS. Seu trabalho nas guerras afegãs e iraquianas lhe deu experiência suficiente para saber como se portar em zonas de conflito. Uma semana antes, ela e sua equipe foram detidas e interrogadas sob a mira de fuzis por soldados do Exército. Lara deixou o Egito, mas voltou dias depois. Por causa desse incidente anterior, muitos comentaristas de mídia perguntavam se havia necessidade de ela retornar. Antes de ser violentada, Lara disse que ‘estava em seu sangue de repórter’ a missão de continuar na Praça Tahrir, ‘algo compreensível para uma profissional acostumada com coberturas tensas’’, segundo levantamento da revista Época.
Mas, afinal, por que associamos a beleza feminina a um risco iminente? Como essa associação surgiu e por que ela ainda faz sentido nos dias de hoje? Uma das respostas possíveis é o fato de que a ideia da mulher bonita foi construída culturalmente como uma imagem que se oferece. Das capas de revistas femininas contemporâneas às Vênus renascentistas as mulheres estão ali para oferecer seu corpo nu, a sua beleza aos olhos dos demais. Ela foi construída como algo a ser exibido, doado ao olhar alheio. Fato que se soma a uma gradativa noção de uso e apropriação da beleza feminina e não mais de contemplação distanciada dela. Pois, quando a beleza da mulher consagra-se no Renascimento, como sendo ela o belo sexo, a mulher mantinha-se no plano dos sonhos, de uma beleza contemplativa de uma deusa: a Vênus de Botticelli (1485).
No século 20, persiste a distância entre beleza e acesso a ela com as stars hollywoodianas – de beleza etérea. Distância, essa, que aos poucos diminui. As pin-ups (garotas de calendário) passam a ser fotografadas em ambientes ou cenários cotidianos e não mais em cenas romantizadas e idealizadas. Hoje, nas revistas masculinas as mulheres exibem-se como sendo mulheres de carne e osso – estando mais próximas da explicitação do desejo sexual do que a idealização romântica dos seus corpos. Passam, pouco a pouco, do céu à terra.
O que aconteceu ‘não a destruiria’
Mas, se por um lado essa é uma conquista e um direito da mulher – viver sua sexualidade e seu corpo livremente como uma pessoa real – por outro lado, sua liberdade individual é tomada como um ‘direito de uso’ masculino – transformando sua conquista, contraditoriamente, em mais um cerceamento ao uso de seu corpo e a exposição dele.
Toda mulher bonita já enfrentou, em uma festa ou boate, o desconforto de ser tocada. De ter os cabelos puxados, o braço apertado ou um toque agressivo nas nádegas ou mesmo na genitália. Tocá-la parece um direito que os homens possuem. Invadem sua intimidade como se tivessem direito a um acesso violento do seu corpo e de sua beleza.
Eis o limite social delicado da beleza: o seu risco. Se a beleza é algo que pode ser vivido sem culpa e restrições, como não tornar a sua vivência um aprisionamento no desejo do outro? Como experimentar a liberdade e autonomia do seu corpo, sem que isso seja um aval de domínio e agressão?
A mulher deve, sim, viver sua condição estética e laboral sem que isso seja uma contradição. Não podemos negar esse direito a mulheres bonitas: nem as agredindo fisicamente, muito menos duvidando de sua capacidade, como fizeram seus colegas de profissão e o público. Ambas são formas de violentá-la. Tanto que a revista Época, identificando tal fato, intitulou o seu artigo de ‘A dupla agressão a Lara Logan’ (18/2). Uma agressão que, infelizmente, não é apenas masculina, mas que ganha coro na inveja feminina.
Para continuar avançando, mesmo frente as suas contraditórias conquistas, a mulher não pode esconder-se. Vitimar-se. Colocar uma burca. Para ser livre, há, sim, de se reconhecer publicamente o direito de se ser livre, por isso a importância de que as mulheres possam usufruir do seu corpo, de sua beleza e mostrá-la, sem que isso signifique que ela o ofereça ao domínio alheio. Eis, o mais importante: que ela tenha sempre o poder de gerenciar seu corpo e sua vida.
Por fim: ‘Familiares e amigos de Lara Logan afirmam que a repórter estaria comprometida a voltar ao trabalho em breve e teria dito a amigos que o que aconteceu com ela no Egito `não a destruiria´.’
Como foi o caso
No dia 11 de fevereiro, durante as comemorações do fim do regime após violenta revolução popular, a jornalista da emissora americana CBS, Lara Logan foi separada de sua equipe por manifestantes, cerca de 200 homens. Ela foi violentada sexualmente por alguns deles durante quase 30 minutos, até ser socorrida por um grupo de mulheres e soldados egípcios. A jornalista regressou aos EUA sendo hospitalizada, sem risco de morte. Após o episódio a repercussão do fato por colegas de profissão e pelo público chamou igualmente a atenção.
Na internet alguns disseram que ela poderia ter evitado a agressão, que não deveria ir à zona de conflito, atribuindo a sua co-responsabilidade no fato. O comentário mais grave foi feito pelo repórter Nir Rosen e professor da Universidade Nova York. Em seu Twitter ele afirmou que Lara ‘provavelmente foi apalpada como milhares de outras’ e ‘se ela não fosse branca, o caso não teria tido a mesma repercussão’. Insinuou, ironicamente, que a violência a beneficiaria profissionalmente, pois seria ‘uma mártir glorificada, devemos nos lembrar de seu papel como grande `defensora de guerras´’ (referindo-se a coberturas anteriores feitas pela jornalista no Afeganistão e no Iraque). Diante das reações negativas e de sua demissão da Universidade de Nova York, o jornalista Rosen pediu desculpas e retirou do Twitter os comentários.
Mas, não foi o único a agredi-la. A radialista e blogueira conservadora Debbie Schlussel agressivamente afirmou: ‘Espero que esteja gostando da revolução, Lara! Isso nunca aconteceu quando Mubarak tratava seu país de selvagem da única forma como podem ser controlados’ (revelando também o traço anti-muçulmano). Vários blogueiros também insinuaram que ela era culpada pela agressão, na medida em que havia assumido o risco como mulher, ‘loira ainda por cima’.
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Jornalista, doutoranda no curso de Sociologia da USP e mestre em Comunicação Social pela UFMG, autora de Sete propostas para o Jornalismo Cultural (Miró, 2009) e Mapeamento do Jornalismo Cultural no Brasil (Itaú Cultural, 2008)