Desde que foi escolhida como sede da Copa do Mundo de 2010, em maio de 2004, a África do Sul vem recebendo da imprensa mundial uma espécie de ‘olhar desconfiado’ em relação à realização dos jogos em seu país. A Folha de S.Paulo, no domingo (16/05), deu um exemplo claro de preconceito.
A reportagem do caderno de esporte, que não leva o nome do repórter, deu ênfase para o fato que a cidade de Johanesburgo, uma das nove sedes dos jogos, atravessa por um caos no sistema de transporte, especificamente os corredores de ônibus. O transtorno, segundo a matéria, ocorre por conta da concorrência entre vans e coletivos. A disputa pelo território tem gerado conflitos na capital e atingirá de cheio os turistas que estarão no país durante os jogos.
É questão de visão jornalística discutir temas dessa natureza. Aliás, transporte é talvez uma das obrigações de qualquer comitê organizador para um evento desse porte. Dentro da mesma matéria, essa abordagem, juntamente com o aviso para os turistas de encontrar na África do Sul um clima de temperaturas baixas, não foi o que chamou mais atenção. Não poderia ser diferente: o que mais ficou à mostra foi o que o jornal chamou ‘os 10 mandamentos’ para segurança.
Sacrifício foi em vão
O guia de segurança para os turistas dá dicas de como você, que viajará para Copa, deve evitar ser uma vítima em potencial. A orientação passa por informar para não parar em semáforo desligado; não falar em celulares pela rua; não visitar uma favela sem um guia. Os mais gritantes ficaram por conta do recado para evitar os centros urbanos de noite e finais de semana, como se fosse alguma punição, uma vez que é o período de maior fluxo dos turistas, e também da comparação ao turista doméstico que viaja para São Paulo e Rio de Janeiro, afirmando que esses viajantes não freqüentam áreas afastadas por conta da violência dessas regiões.
O pior ainda estaria por vir. O guia trouxe o raio-X das regiões mais perigosas das cidades por onde a seleção brasileira irá jogar, descrevendo exatamente o lugar por onde o turista deve ficar ou transitar, evitando outras regiões consideradas ameaçadoras. A questão a ser discutida está aí. Como é possível classificar lugares de risco ou não, mesmo que a matéria fora feita por um profissional que esteja vivenciando a realidade dessas cidades durante alguns meses, sem que tenha feito uma apuração mais detalhada dos índices de violência do país, já que não foi apresentado pelo jornal? Se o intuito não foi de exclusão de classes, foi o transpareceu.
Trata-se de um país que apenas há 16 anos se libertou de uma doença como foi o apartheid. Um regime de intensa opressão e exclusão entre brancos, dominantes, e negros. Evidentemente que as conseqüências de um regime como esse só poderiam ter deixado um abismo entre a civilidade e a desordem. Isto permitiu também um afastamento entre brancos e negros no país que, com muito esforço dos sul-africanos, deverá ser diminuído. Se depender da visão do jornal, foi em vão todo sacrifício para o fim do sistema segregador e permanecerá o aprofundamento social.
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Jornalista, Guarulhos, SP