Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Viver e aprender’ é pura cascata

Um leitor do meu blog, Renato Machado, me enviou o seguinte e-mail:

Prezado Persegonha,

A Folha de S.Paulo de 17/2/2004 deu, sob a manchete ‘Site apresenta ameaças de facções’, uma notícia com o seguinte começo: ‘Internautas estão usando um blog para fazer apologia às facções criminosas do Rio de Janeiro e de São Paulo. A origem da página, que está no ar desde outubro, está sendo investigada pela Delegacia de Repressão a Crimes Contra a Informática.’ E, no meio da notícia, a dica para localizar o blog: ‘Usando nomes fictícios ou pseudônimos – como TCP Boladão e 157 Vila Kenedy (favela da Zona Norte) – os usuários do blog enviam mensagens dizendo que um grupo vai invadir a favela do outro.’ Pronto. Foi só colocar um desses pseudônimos (existe alguma diferença entre nome fictício e pseudônimo?) no Google para dar com uma lista de comentários do Leite de Pato. É, Persegonha, acho que estão usando você… cuidado… Um abraço, Renato Machado

Esclarecimentos: Persegonha, na verdade, é o pseudônimo com que eu, Felipe Flexa, redator do programa Casseta & Planeta e editor do Casseta & Planeta OnLine, assino o meu blog, o Leite de Pato.

Então quer dizer que as coisas funcionam mais ou menos assim: eu tenho uma idéia para uma pauta. Ao invés de procurar o dono do site para pedir algum esclarecimento ou alguma informação, não. Vou à polícia e digo:

– Olha, tem um site aí onde uns internautas tão fazendo apologia às facções do crime organizado e tal.

A polícia dá uma verificada e pronto: lá estão vários comentários de internautas, se provocando, defendendo a sua ‘agremiação’ (para ficarmos nos eufemismos), enaltecendo bandidos etc.

Coisa de moleque? Coisa de traficante? Quem vai saber?

Pelo menos, a matéria da FSP não me cita diretamente, embora o repórter tenha confirmado que o blog em questão seja mesmo o meu. Aliás, a bem da verdade, não sou citado nem indiretamente. Mas acredito que não custaria nada ao repórter ter me mandado um e-mail ao menos dizendo:

– Eu tava olhando o seu blog e vi etc. etc. etc…

Imediatamente eu vasculharia o site (como fiz), localizaria o post (como também fiz) e deletaria tudo isso (como já está feito).

O que eu não posso admitir como normal é a manchete da matéria:

‘Site apresenta ameaças de facções’

Ora, qualquer pessoa lendo uma manchete dessas pensaria que o autor do site é o responsável por este tipo de coisa. Mesmo sem ler o texto, alguém poderia já de cara, num pré-julgamento, achar que o editor do blog está mancomunado com esta atitude.

O texto vai além:

‘A origem da página, que está no ar desde outubro, está sendo investigada pela Delegacia de Repressão a Crimes contra a Informática.’

Em primeiro lugar, a informação está incompleta: fala que o blog está no ar desde outubro, mas não diz que é desde outubro de 2001. Em segundo lugar, não é preciso investigar a origem da página: EU SOU A ORIGEM DA PÁGINA, O DOMÍNIO ESTÁ REGISTRADO NA FAPESP E NO NOME DA MINHA EMPRESA. Espero que com estas informações, muito simples de se averiguar por sinal, eu esteja prestando um serviço à polícia, evitando que se gaste mais dinheiro público com esta investigação.

E continuando:

‘A Folha teve acesso ao blog. (…) Uma das mensagens trazia duas listas com as favelas que são dominadas pela ADA (Amigos dos Amigos) e pelo TCP (Terceiro Comando Puro).’

A reportagem não diz que estas mensagens estavam na caixa de comentários do blog. De um post de janeiro de 2002. Ora, é muita má vontade não ver que os comentários não refletem a opinião do editor do site, que, além disso, não fica lendo comentários de um texto escrito há dois anos atrás. O post em questão criticava o governo do estado, que queria processar uma diretora de colégio que ‘deixou’ que os traficantes colocassem as iniciais de sua facção no alto da escola. Eu gostaria de saber o que aconteceria com ela caso negasse este ‘pedido’ (mais um eufemismo) dos bandidos. Era isso. Em nenhum momento havia uma exaltação pró-tráfico, pró-bandido, pró-facção. Era pró-professora, a principal vítima desta esculhambação.

Seguindo a matéria:

‘Policiais da Delegacia de Informática disseram que vão tirar o blog do ar porque consideram que os usuários fazem apologia ao crime organizado.’

Em primeiro lugar, o Leite de Pato não tem usuários. Tem leitores. Como já disse, eles lêem o que eu escrevo e dão a sua opinião. Sobre qualquer assunto: futebol, religião, política, violência, mulher pelada, literatura, cinema, esquerda, direita, enfim, qualquer assunto que renda um post. Segundo: vão tirar o blog do ar baseado em quê?

Em comentários de terceiros, escondidos numa área praticamente ociosa do site, que eu mesmo só visitei ontem para deletar as alusões aos criminosos? Meu Deus, qualquer blogueiro pode me servir de testemunha. Solidariamente, uns 10 já me ofereceram ajuda, entre jornalistas, advogados e peritos da polícia. Me ofereceram ajuda caso aconteça alguma coisa, claro, porque tudo isso é tão absurdo, tão kakfiano, tão surreal, que é muito difícil acreditar que eu não esteja dentro das páginas de um livro!

Os ‘usuários do site’, em sua imensa maioria, desde os leitores assíduos até os desocupados que escreveram essas bobagens pró-tráfico, são completamente desconhecidos para mim. A impressão que me dá, lendo o texto, é que eu abri o blog só pra esse pessoal mandar suas mensagens, suas ameaças. Uma loucura! Uma doideira! Qualquer tribunal me dá ganho de causa sem ter que me esforçar muito.

Bem, espero não ter dores de cabeça com isso. Mas na linha do ‘olha-como-somos-demais’, a reportagem acaba assim:

‘No ano passado, após uma reportagem da Folha, a Delegacia de Informática retirou do ar cinco sites supostamente vinculados às facções criminosas.’

Viram como a FSP é importante? Mas que sites são esses? Infelizmente não tenho essa informação.

Lição nenhuma

A imprensa brasileira vive um momento muito ruim. Primeiro abrem o escândalo. Jogam o sujeito no olho do furacão e depois começam a dizer que a coisa não é bem assim. Mas aí Inês é morta e o sujeito tem que provar na Justiça que é inocente, depois de ser linchado por causa de um pré-julgamento de jornal.

E vai aqui uma sugestão para as faculdades de Jornalismo: no primeiro dia de aula, os alunos devem conhecer, de cara, o caso da Escola Base. Claro que não estou comparando meu caso com este escândalo que provocou um grande descrédito na imprensa brasileira (crédito este que, convenhamos, não é lá essas coisas). Mas foi exatamente assim que aconteceu: primeiro, estraçalharam o dono da escola, acusando-o de molestar as crianças lá matriculadas. Depois, começaram com aquela historinha pra boi dormir de ‘não-foi-bem-assim’. Em seguida, chegaram à brilhante conclusão de que era tudo mentira. Exatamente quando o sujeito já estava na mais absoluta miséria, destruído psicologicamente. Mas como ainda existe uma nesga de Justiça neste país, o dono da escola ganhou um megaprocesso, em que a própria dona Folha de S.Paulo morreu numa belíssima grana.

Que é o que vai acontecer de novo, caso me acusem de apologia ao tráfico.

No fim, chego à conclusão de que a velha idéia de ‘viver e aprender’ é pura cascata. Taí a imprensa brasileira que teve o caso da Escola Base e não aprendeu nada…

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Editor do Casseta & Planeta OnLine