Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vivi entre terroristas!

Conto na primeira pessoa apenas porque essa história, de arrepiar os cabelos, meninos, eu vi e vivi. Pois é, eu passei longos dias e longas noites entre terríveis terroristas! E só fiquei sabendo agora, meses após os fatos, graças à internet e à polícia de Berlusconi.

A coisa começou em Florença, em janeiro de 2003, para onde viajei, desde Milão, onde me encontrava em férias, para participar de mesa em seminário político, onde falaria, uma outra vez, da então recente vitória do governo Lula da Silva no Brasil.

Da mesa participavam o filósofo Domenico Lossurdo e um outro companheiro. Na ocasião, reclamei quando propuseram ‘movimento antiamericanista’. Lembrei que, na América Latina, somos americanistas, já que defendemos um continente unido na luta contra o imperialismo estadunidense.

Na hora do café, veio falar comigo um companheiro italiano, baixinho, moreno, o estereotipo cinematográfico do meridional. Por essas coisas da vida, seu sobrenome era precisamente Moreno, e sua família, originária da Sicília, acho.

As aparências enganam, amigos. Tremo até mesmo ao escrever. Era ele. Sim, era ele, o baixinho, moreno, simpático, falador, sempre altercado na discussão, do tipo-sabe-tudo-antes-de-todos. Sim, era ele o terrível terrorista italiano!

Mas não adiantemos a história. Meses mais tarde, recebi em Porto Alegre e-mail convidando-me a falar novamente do governo Lula, em acampamento antiimperialista em Assis. Tema que, confesso, já se tornou minha sina italiana!

Informei-me com amigos italianos sobre o Acampamento. Disseram-me tratar-se de microforum social que se realiza, há uns quinze anos, às portas da vila de Assis, com uma proposta simples: passe as férias sob o sol da Itália participando de feira – no bom sentido – antiimperialista.

Como recebera um outro convite da Itália, para a mesma época, aceitei prontamente a proposta. Na época, irresponsável, temi apenas que não cumprissem a palavra de pagarem a passagem aérea! A viagem serviria também para visitar meu filho que mora, trabalha e estuda em Milão. Assim, combinei que ele me pegaria no aeroporto e iríamos juntos a Assis. Sem saber, lançava, inconsciente, as entranhas de minhas entranhas no seio de uma rede terrorista!

Coisas de italiano

Ao chegarmos a Assis, não encontrávamos o camping. Apenas dobramos uma curva nos deparamos com viatura policial e dois carabinieri, meio atravessados sobre a estrada. Sem vacilações, Gregório desceu do carro, entabulou conversação com um policial que anotou, sobre o mapa, com detalhes, o caminho do Acampamento.

À primeira vista o Acampamento me pareceu uma alegre pagaille de estudantes em férias. Apesar do nome pomposo, tudo lembrava as festas do Unità de cidades pequenas: algumas estantes de livros e discos de esquerda e umas seis tendas semidesertas, com mesas e cadeiras de plástico, para as discussões político-culturais.

Como na tradicional Feira do Livro de Porto Alegre, sempre repleto de participantes, apenas o bar central do Acampamento, uma tenda bem maior, onde se bebia sobretudo cerveja, certamente por exigência chauvinista do público austríaco e alemão que dominava absoluto entre a microbabel européia.

Dourando a pílula

Confesso que tremi de medo ao ver as barracas precárias onde pernoitavam os jovens participantes do evento. Certamente em respeitos às costas cinqüentenárias do convidado brasileiro, tiveram a sensibilidade de alojar-me em um dos muitos modernos e cômodos chalés do camping.

Fiquei logo sabendo que era uma das atrações do evento. Como sempre, apesar de meus inúteis protestos, fui apresentado como professor da Universidade de Porto Alegre. Prezados amigos italianos e europeus, no Rio Grande do Sul não há universidade de Porto Alegre!

Os dois outros convidados de honra eram um ex-coronel do exército iraquiano e um jovem palestino, registrado como combatente fedayn no Iraque. Como no nome do Acampamento, havia uma certa exagero na apresentação dos dois participantes.

O coronel e o estudante

Muito bem-informado sobre os fatos do Iraque, o coronel encontrava-se refugiado – do governo de Saddam, é claro – havia longos anos, creio, na Dinamarca. No frigir dos ovos, o fedayn era apenas um universitário palestino que fora preso em dormitório universitário após a invasão.

Entre os lobos, é necessário uivar. Após as conferências, freqüentei assiduamente o animado bar do acampamento onde conheci, após múltiplas traduções simultâneas – do grego ao alemão, do alemão ao italiano – sindicalistas, militantes e estudantes que me enriqueceram com informação precisa, pensada e ponderada sobre suas sociedades de origem.

Também me surpreendeu a participação ativa, informada e disciplinada daquele povo heterogêneo nas mais diversas discussões, fosse o relatório de um padre católico sobre a situação do Iraque ou de um historiador brasileiro da ‘Universidade de Porto Alegre’ sobre o governo Lula e o orçamento participativo.

Todos contentes

Com Moreno, pouco conversei, já que estava sempre correndo, nervoso, organizando o evento e dando entrevistas sobretudo a jornais regionais da Itália central que, sem assunto, como o fazem nos últimos quinze anos, noticiavam bombasticamente a reunião de raivosos esquerdistas ao pé das muralhas da vila de São Francisco.

Concentração esquerdista que, ao igual do Fórum Social de Porto Alegre, recebe o discreto mas firme apoio político do comércio local, já que são alguns milhares de visitantes italianos e europeus que chegam, todos os anos, nem que seja para beber uma cerveja e escutar uma palestra mais ao gosto.

Voltei a me encontrar com Moreno apenas em janeiro passado, quando realizei uma outra palestra, agora em centro comunitário de Perugia, para variar sobre o primeiro ano do governo Lula.

O poder da notícia

Desta vez, na hora do jantar, pude divergir com mais calma da visão para mim um tanto simplista de Moreno de um mundo dividido em nações imperialistas e colonizadas, no qual as oposições nacionais entre explorados e exploradores não desempenham praticamente nenhum papel.

Confesso, sinceramente, ter vacilado, um momento, há poucos dias, ao ler na internet que Moreno Pasquinelli, ‘perigoso terrorista italiano’, fora preso quando de grande redada lançada sobretudo pela polícia italiana contra militantes da esquerda turca.

Mas ‘trop, c’est trop!’, dizem os franceses. Ao noticiarem, igualmente, que Moreno Pasquinelli comanda um centro de treinamento e recrutamento terrorista que se reúne anualmente em Assis, pude aquilatar a dimensão da buffonata em construção.

Puros e duros

Nos quatro dias que passei no Acampamento, a única transgressão à ordem constituída que assisti: alguns estudantes fumando discretamente um baseado, ao cair da noite, sob os olhares recriminadores de militantes mais puros e duros e, portanto, não chegados a essa prática alternativa!

Em outra notícia sobre a prisão de Moreno, li que, durante o Acampamento, recolheram-se fundos para a resistência armada iraquiana. O que é certo, tenho que reconhecer. Confesso que controlei com curiosidade sociológica o resultado da campanha anunciada de ajuda financeira à resistência.

A arrecadação – recebida em pequena caixa de papelão posta sobre a mesa – não ultrapassou algumas centenas de euros. E, entre eles, cinco foram meus! [Será que não sou, também, um terrorista, sem o saber?] Porém, não há por que criticar os magros resultados. Em geral, os participantes eram jovens estudantes e operários desempregados. Sob o forte calor, os euros escassos foram empregados sobretudo na compra de cerveja. ‘Nada do que é humano me é estranho’ – já dizia o bom profeta de Iena, também fanático bebedor de boa cerveja!

Narizes de Pinochio

A população italiana tem-se mobilizado maciçamente contra Berlusconi, suas palhaçadas e seu governo que têm realizado ataque geral aos trabalhadores e cidadãos do país. Espera-se nas próximas eleições do Parlamento Europeu derrota histórica do presidente do conselho, em especial, e da direita italiana, em geral. Depois dos resultados na Espanha e na França, a derrota pode ser catastrófica.

A prisão de Moreno Pasquinelli tem sentido claro: associar em forma imediata e oportunista a luta antiimperialista e anticapitalista com o terrorismo, enquanto a população européia vive ainda sob o impacto dos terríveis acontecimentos da Espanha. Uma operação de objetivo ideológico, político e eleitoral que certamente se desdobrará em novas iniciativas do mesmo gênero.

A mentira tem pernas cada vez mais curtas. Bush e Colin Powell tentam inutilmente fazer esquecer suas afirmações terroristas sobre as armas de destruição de massa de Saddam. José María Aznar e o Partido Popular acabaram vergados pela indignação popular espanhola com a vil utilização eleitoral do atentado de Madri.

À reivindicação da libertação imediata de Moreno Pasquinelli e de todos os presos deve ser associada a exigência de uma investigação ampla e independente dos sentidos e objetivos dessa nova buffonata de Berlusconi, esse espécie de réplica fracassada de Totò, que não faz ninguém rir.

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Historiador