O texto a seguir não segue o padrão acadêmico, mas tampouco é um artigo jornalístico tradicional. Ele é acima de tudo uma provocação para que tanto acadêmicos como jornalistas profissionais superem o divórcio que os divide, tendo em vista a dimensão das mudanças que ainda estão por ocorrer na comunicação e na informação. Os profissionais procuram a academia apenas quando precisam de respaldo teórico para seus projetos e os acadêmicos só chegam na imprensa quando lhes falta visibilidade popular.
Acontece que o jornalismo já mudou muito e vai mudar mais ainda, mas o muro corporativista ainda separa as duas vertentes da comunicação. Os desafios vão desde a necessidade de buscar uma nova definição de jornalismo capaz de incorporar as consequências socioeconômicas e culturais da digitalização, até o desenvolvimento de novas rotinas de investigação da realidade, passando pela experimentação de novos formatos narrativos. São muitos dilemas e muitas questões a serem resolvidas rapidamente.
Vamos começar pela definição de jornalismo. Os profissionais contratados por empresas de comunicação ainda seguem a regra, que em síntese, diz que a função do jornalismo é contribuir, por meio da notícia, para a formação de bons cidadãos dentro de uma democracia. Já as pesquisas mais avançadas na academia definem o jornalismo como uma prática social preocupada com a produção de conhecimento. Entre os dois conceitos há um enorme fosso provocado por visões diferentes da nova realidade digital e que determinam condutas, normas e valores bem diferentes.
Estas duas perspectivas não são excludentes porque o desenvolvimento do jornalismo está indicando que é inevitável a coexistência tanto da preocupação com a notícia voltada para a promoção da democracia, como o foco na prática como meio de identificar fatores geradores de conhecimento. A novidade é a tendência a não haver um pensamento dominante, como o dogma, atualmente inquestionável, da associação entre jornalismo e democracia. Ao mesmo tempo, a visão do jornalismo como uma prática social é vista, por muitos, como uma heresia profissional.
No conceito tradicional, valem comportamentos como a busca do “furo” jornalístico, a obsessão com o imediatismo, a impessoalidade, objetividade, isenção e a preocupação com a audiência porque destes fatores depende a sobrevivência financeira do jornal, revista ou telejornal. Já a definição do jornalismo como prática social coloca como meta prioritária o engajamento com o público como forma de entender o que ele deseja e necessita para que esta compreensão gere conhecimentos coletivos e individuais capazes de atender desejos e necessidades.
Certezas e incertezas
As diferenças aparecem também na hora de analisar as regras que orientam as duas formas de praticar o jornalismo. No jornalismo tradicional, temos os manuais de redação que determinam como as notícias devem ser colhidas, editadas e publicadas de forma a garantir audiência. Já a nascente tendência a ver o jornalismo como prática social, geralmente associada a projetos na internet, não segue regras definidas porque cada iniciativa é uma aposta, uma experiência sujeita a um alto grau de letalidade.
O contraponto dos manuais de redação na perspectiva do jornalismo como ferramenta para a produção de conhecimentos é o uso de procedimentos metodológicos herdados da etnografia, antropologia e sociologia. O método mais estudado e praticado é o etnológico, cuja aplicação ao jornalismo altera drasticamente a conduta do repórter no trabalho de campo. A preocupação principal do profissional é observar, inclusive com participação, as atividades, equipamentos e a forma como as comunidades observadas descrevem suas ações, desejos e necessidades. Não há preocupação com isenção, distanciamento ou imparcialidade, e sim com a eliminação de ideias preconcebidas ou pautas pré-elaboradas. Tudo tem que ser descoberto a partir da realidade que é objeto da reportagem.
O recurso ao método etnológico é justificado pelos seus adeptos pelo fato do jornalismo estar hoje diante de realidades cada vez mais complexas, em sua maioria, ainda pouco exploradas, onde a melhor ferramenta é a observação. É o que faz um cientista quando pesquisa a produção de uma vacina e a eficácia de sua aplicação.
As rotinas consagradas nos manuais de redação privilegiam a eficiência operacional na produção de notícias, o que implica uma relação custo/benefício preocupada com gastos mínimos e receitas máximas. A aplicação de procedimentos etnográficos na realização de uma reportagem implica maior tempo de investigação, sem garantia de resultados pré-estabelecidos, o que significa redações maiores para que haja um número suficiente de opções para publicação. É uma alternativa desejável diante do alto desemprego entre jornalistas, mas rejeitada pelos dirigentes de empresas sob a alegação de que a crise na imprensa impõe redução compulsória de despesas.
Quando se analisa a questão dos valores associados às duas visões do jornalismo delineadas neste texto, as diferenças ficam bem mais claras. O conjunto dos valores do jornalismo convencional, quase todos herdados da era analógica, embutem uma contradição entre um discurso liberal democrático e uma prática hierárquica e centralizadora, enquanto na perspectiva digital, o jornalismo como prática social é necessariamente descentralizado pelo fato de lidar com um ambiente virtual ainda pouco conhecido e com tecnologias em permanente evolução. A fluidez do jornalismo online obriga seus praticantes a uma convivência permanente com incertezas o que acarreta a necessidade de colaboração entre profissionais e não profissionais como item obrigatório na busca de sobrevivência.
Voltando ao início deste texto, a necessidade de um diálogo entre profissionais e acadêmicos no jornalismo decorre do fato de que ambos operam numa mesma realidade. O que os distingue são visões diferenciadas fruto de uma conjuntura de transição de modelos, provocada por inovações tecnológicas que alteraram radicalmente o modo de produção da sociedade em que vivemos. Temos hoje um modo mecânico/analógico tendo que conviver com o modo eletrônico/digital. Onde antes havia um modelo hegemônico consolidado, hoje temos duas propostas distintas que não são excludentes e que, queiramos ou não, são partes do mesmo processo de produção de conhecimentos.
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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.